quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

HISTÓRIA DO TEATRO 10


TEATRO NO BRASIL


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-Os jesuítas mantinham os indígenas em pequenas aldeias, isolados de dois terríveis perigos: a vida desregrada e a escravidão impostas pelo homem branco explorador e o consequente retorno ao paganismo;

-Através do canto, música, mímicas e máscaras os jesuítas buscavam introduzir princípios do cristianismo e da ‘civilização’, constituindo uma espécie de ‘pré-teatro’;

-Essa forma de representação cênica, portanto, tinha por objetivo evangelizar os índios, além de apaziguar os conflitos entre eles e os colonos portugueses e espanhóis;

-Tematicamente, essas produções mesclavam a realidade local (tanto de índios quanto dos colonos) com narrativas hagiográficas (vidas dos santos);

-Os espetáculos tinham como elenco os índios catequizados e eram apresentados, na maioria das vezes, ao ar livre – alguns deles tendo a selva por cenário; noutros, ao estilo do teatro medieval, nos átrios (pátio ou espaço antes) das pequenas igrejas;

-De todos, o espetáculo mais grandioso foi do "Auto das Onze Mil Virgens", em maio de 1583, em honra aos padres Cardim e Gouveia e que contou com a participação de todo o povo da Bahia;

-Este auto, que era uma tragicomédia inspirada na vida de Santa Úrsula e na lenda das onze mil virgens, foi representada cinco vezes entre os anos de 1582 e 1605;

-Jesuíta de grande importância para a época, Padre José de Anchieta, conhecido como “apóstolo do Brasil” tem participação fundamental no início do teatro brasileiro;


SANTA ÚRSULA

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-Santa da Igreja Católica; 

-Natural da Grã Bretanha, martirizada por volta do ano 383 em Colônia na Alemanha; 

-Era filha do rei Dionotus da Inglaterra. Era celebrada no calendário litúrgico em 21 de outubro até 1969 quando foi removida após uma revisão pela origem duvidosa dos fatos; 

-Uma jovem de beleza excecional chamada Úrsula, filha de um soberano bretão (era a província que ocupava o centro-sul da ilha da Grã-Bretanha, conforme determinavam os romanos), converteu-se secretamente ao cristianismo prometendo guardar a sua virgindade. Quando foi pedida em casamento por um príncipe pagão (usado para se referir a tradições religiosas politeístas - crença e subsequente adoração a mais do que uma divindade de gênero masculino, feminino ou indefinido) de nome Ereo, filho do rei de Inglaterra;

-O seu pai acedeu (aumentou, anuiu, conformou, submeteu, acresceu, aquiesceu, resignou) receoso, impondo entre outras condições que a filha fosse acompanhada por dez virgens, e outras mil para ela e para cada uma das dez que a acompanhavam, e que o casamento tivesse lugar no prazo de três anos; 

-Numa viagem, um anjo anuncia a Úrsula que ela morrerá martirizada. Úrsula decide realizar uma peregrinação a Roma para obter a consagração dos seus votos secretos; 

-Em Roma, foi recebida com muitas honras pelo papa Ciríaco, que consagrou os seus votos de virgindade; 

-Recebendo uma revelação de que morrerá mártir com as virgens, o papa renuncia ao papado e, juntamente com muitos bispos, parte com ela; 

-Dirigem-se à Alemanha, onde encontram Colônia sitiada (cercada) pelos hunos, que matam todas as virgens; 

-O príncipe dos hunos apaixona-se por Úrsula e quer tomá-la por mulher, mas a jovem resiste e ele mata-a com uma seta;

-O número de onze mil virgens, aparentemente exagerado, parece dever-se a uma leitura incorreta de uma lápide encontrada em Colônia, em que se lia: "XI MM VV", sendo que a abreviatura "MM" em vez de interpretada como "mártires" ("onze mártires virgens") o foi como "mil" ("onze mil virgens“. 

Huno 

-Povo bárbaro e nômade (não tem habitação fixa) da Ásia central, que sob a chefia de Átila, nos meados do século V, invadiu e exerceu domínio sobre grande parte da Europa. 

Átila 

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-Rei dos hunos; 

-Foi um dos maiores inimigos dos impérios romanos Oriental e Ocidental; 

-Esteve a ponto de tomar a cidade de Roma; 

-Seu reinado foi desde o ano 434 até sua morte em 453.



JOSÉ DE ANCHIETA

(1534-1597)

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-Padre jesuíta espanhol, santo da Igreja Católica e um dos fundadores da cidade brasileira de São Paulo;

-Beatificado em 1980 pelo papa João Paulo II e canonizado em 2014 pelo papa Francisco, é conhecido como o Apóstolo do Brasil, por ter sido um dos pioneiros na introdução do cristianismo no país;

-Em abril de 2015 foi declarado co-padroeiro do Brasil;

-Foi o primeiro dramaturgo, o primeiro gramático e o primeiro poeta nascido nas Ilhas Canárias (Espanha);

-Foi o autor da primeira gramática da língua tupi, e um dos primeiros autores da literatura brasileira, para a qual compôs inúmeras peças teatrais e poemas de teor religioso e uma epopeia (poema extenso que narra as ações, os feitos memoráveis de um herói histórico ou lendário que representa uma coletividade);

-Filho de João López de Anchieta e de Mência Diaz de Clavijo y Llarena, descendente da nobreza canária; 

-Seu pai foi um revolucionário basco (região histórico-cultural em que residem os bascos, localizada no extremo norte da Espanha e no extremo sudoeste da França) que tomou parte na Revolta dos Comuneros (1520-1522) contra o Imperador Carlos V na Espanha e um grande devoto da Virgem Maria. Era aparentado dos Loyola, daí o parentesco de Anchieta com o fundador da Companhia de Jesus, Inácio de Loyola. 

Revolta dos Camuneros 

-Foi um levantamento contra a coroa que teve lugar entre 1520 e 1522, protagonizado pelas cidades do interior do Reino de Castela (foi um dos antigos reinos da Península Ibérica - formada por Gibraltar, Portugal, Espanha, Andorra e uma pequena fração do território da França);

-A Revolta aconteceu motivada contra as pretensões do rei Carlos V da Espanha em modificar o governo da coroa, subtraindo poderes das comunidades de Vila e Terra castelhanas (as cidades) com o objetivo de aprofundar a centralização do poder.

Companhia de Jesus

-É uma ordem religiosa fundada em 1534 por um grupo de estudantes da Universidade de Paris, liderados pelo basco Inácio de Loyola;

-A Congregação foi reconhecida por bula papal (alvará – documento/declaração - passado pelo Papa ou Pontífice católico, com força de lei eclesiástica, pelo qual se concedem graças e indulgências aos que praticam algum ato meritório) em 1540;

-É hoje conhecida principalmente por seu trabalho missionário (trabalho de promoção social em local que necessite de reavivamento de sua crença ou religião) e educacional. Em 2009, a Companhia era a ordem religiosa masculina mais numerosa na Igreja.

Continuando Anchieta

-Tinha 12 irmãos;

-Além dele abraçou o sacerdócio Pedro Nuñez;

-Anchieta viveu com a família até aos quatorze anos de idade, quando se mudou para Coimbra, em Portugal, a fim de estudar filosofia no Real Colégio das Artes e Humanidades, anexo à Universidade de Coimbra;

-A ascendência judaica foi determinante para que o enviassem para estudar em Portugal, uma vez que na Espanha, à época, a Inquisição era mais rigorosa. Ingressou na Companhia de Jesus em 1 de Maio de 1551 como noviço (período da formação de um religioso ou de uma religiosa que precede a emissão de seus votos);

-Desde jovem, Anchieta padecia de tuberculose óssea, que lhe causou uma escoliose (coluna vertebral da pessoa apresenta uma deformação lateral em forma de curva), agravada durante o noviciado na Companhia de Jesus;

-Este fato foi determinante para que deixasse os estudos religiosos e viajasse para o Brasil; 

-Aportou em Salvador, na Capitania da Baía de Todos os Santos a 13 de Julho de 1553, com menos de vinte anos de idade com outros seis companheiros; 

-Anchieta ficou menos de três meses em Salvador, partindo para a Capitania de São Vicente (SP) no princípio de outubro, com o padre jesuíta Leonardo Nunes, onde conheceria Manuel da Nóbrega e permaneceria por doze anos; 

-Anchieta abriu os caminhos do sertão, aprendendo a língua tupi, catequizando e ensinando latim aos índios; 

-Escreveu a primeira gramática sobre uma língua do tronco tupi: a "Arte da Gramática da Língua Mais Falada na Costa do Brasil", que foi publicada em Coimbra em 1595; 

-No seguimento da sua ação missionária, participou da fundação, no planalto de Piratininga, do Colégio de São Paulo; 

-Um colégio de jesuítas do qual foi regente, embrião da cidade de São Paulo, junto com outros padres da Companhia, em 25 de janeiro de 1554, recebendo este nome por ser a data em que se comemora a conversão do Apóstolo São Paulo (um acontecimento na vida de Paulo de Tarso que o levou a deixar de perseguir os primeiros cristãos e tornar-se um seguidor de Jesus);

-Esta povoação contava, no primeiro ano da sua existência com 130 pessoas, das quais 36 haviam recebido o batismo;

-O religioso cuidava não apenas de educar e catequizar os indígenas, como também de defendê-los dos abusos dos colonizadores portugueses que queriam não raro escravizá-los e tomar-lhes as mulheres e filhos;

-Andou pelo interior;

-Intermediou as negociações entre os portugueses e os indígenas reunidos na Confederação dos Tamoios (revolta liderada pela nação indígena Tupinambá, que ocupava o litoral do Brasil entre Bertioga –SP- e Cabo Frio-RJ);

-Anchieta se ofereceu como refém dos tamoios em Iperoig, enquanto o padre Manuel da Nóbrega retornou a São Vicente juntamente com Cunhambebe (filho do cacique) para ultimar as negociações de paz entre os indígenas e os portugueses;

-Entre os índios batizados por Anchieta destaca o cacique Tibiriçá (importante líder indígena tupiniquim);

-Durante este tempo em que passou entre os gentios (para designar os povos Europeus que, gradualmente, se converteram à nova religião, sob a influência do apóstolo Paulo de Tarso e outros. A partir do século XVII, o termo é mais normalmente usado para se referir a não judeus), compôs o "Poema à Virgem“;

-Segundo uma tradição, teria escrito nas areias da praia e memorizado o poema, e apenas mais tarde, em São Vicente, o teria trasladado para o papel;

-Ainda segundo a tradição, foi também durante o cativeiro que Anchieta teria em tese "levitado" entre os indígenas, os quais, imbuídos de grande pavor, pensavam tratar-se de um feiticeiro;

-Teve várias outras missões em solo Brasileiro;

-Foi ordenado sacerdote aos 32 anos de idade;

-Em 1569, fundou a povoação de Reritiba (ou Iriritiba), atual Anchieta, no Espírito Santo;

-Dirigiu o Colégio dos Jesuítas do Rio de Janeiro por três anos, de 1570 a 1573;

-Em 1577, foi nomeado Provincial da Companhia de Jesus no Brasil, função que exerceu por dez anos, sendo substituído em 1587 a seu próprio pedido;

-Retirou-se para Reritiba, mas teve ainda de dirigir o Colégio do Jesuítas em Vitória, no Espírito Santo;

-Em 1595, obteve dispensa dessas funções e conseguiu retirar;

-Embora a campanha para a sua beatificação tenha sido iniciada na Capitania da Bahia em 1617, só foi beatificado em Junho de 1980 pelo papa João Paulo II Ao que se compreende, a perseguição do marquês de Pombal (nobre português) aos jesuítas havia impedido, até então, o trâmite do processo iniciado no século XVII;

-A 27 de fevereiro de 2014, o Papa Francisco anunciou que o Padre Anchieta seria canonizado em Roma, em abril de 2014;

-Após um processo de canonização de mais de 400 anos, o decreto foi assinado a 3 de abril de 2014;

-Em 24 de abril realizou-se a cerimônia de Ação de Graças, presidida pelo Papa, realizada na Igreja de Santo Inácio de Loyola de Roma;

-É também considerado o terceiro santo do Brasil, com Madre Paulina (Austríaca e migrou para o Brasil em 1875) e Frei Galvão, mesmo não sendo nativo, mas por ter exercido sua missão religiosa no território brasileiro, assim como Madre Paulina;

-Os únicos textos de toda essa produção chegados aos nossos dias são de autoria do Padre José de Anchieta;

-Foi responsável pela criação de várias peças, como: “Diálogo do Crisma”, representada na chegada de Bartolomeu Simões Pereira (administrador eclesiástico do Rio de Janeiro, que pretendia ministrar o crisma entre os nativos);

-Outros títulos conhecidos são: “Auto da Vila da Vitória”, “Auto de Guaraparim”, “Auto na Visitação de Santa Isabel” e “Na Festa de São Lourenço”;

-Em geral, as peças eram escritas em até quatro línguas (espanhol, português, tupi e latim) e retratavam acontecimentos da região, buscando sempre um diálogo catequético;

-O teatro escolar dos jesuítas tinha uma forte influência moralizadora e procurava afirmar a autoridade da Igreja, deixando certa margem de liberdade para as pessoas;

-Fazendo forte uso pedagógico, a representação de cenas cristãs faladas em tupi teria transformado o Brasil ‘pagão’ em católico e cristão;

-O padre e dramaturgo Anchieta criou diálogos teatrais com personagens de vida social indígena para falar ao seu espectador, na língua deles, sobre “a maneira boa de viver” e sobre o que seria mau, como rituais e costumes indígenas; 

-Criou um teatro evidentemente pedagógico, com propósitos semelhantes àqueles dos autos religiosos e das moralidades medievais;

-Escreveu não só peças, como também poesias e cartas que deixaram um legado valioso sobre a vida, os costumes, a religião e a sociedade indígena em geral.

Manuel da Nóbrega (1517 — 1570) 

-Foi um sacerdote jesuíta português, chefe da primeira missão jesuítica à América;

-As cartas enviadas a seus superiores são documentos históricos sobre o Brasil colônia e a ação jesuítica no século XVI.




EM BREVE MAIS ATUALIZAÇÕES!




quarta-feira, 17 de maio de 2017

COMMÉDIA DELL' ARTE - FREDERICK MAGALHÃES HUNZICKER



UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS 

INSTITUTO DE ARTES 




FREDERICK MAGALHÃES HUNZICKER 



A ACADEMIA DELL´ARTE - UMA ANÁLISE HISTÓRICA E ARTÍSTICA SOBRE O FENÔMENO DA COMMEDIA DELL´ARTE NA EUROPA COM REVERBERAÇÕES NO BRASIL. 



CAMPINAS 

2015 



Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, como parte dos requisitos exigidos para obtenção do título de Doutor em Artes da Cena. 


ORIENTADORA: PROFA. DRA. NEYDE DE CASTRO VENEZIANO MONTEIRO 



CO-ORIENTAÇÃO: Prof.Dr.Renato Ferracini. 


ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO FREDERICK MAGALHÃES HUNZICKER E ORIENTADA PELA PROFA.DRA.NEYDE DE CASTRO VENEZIANO MONTEIRO.



RESUMO 


A presente pesquisa tem como objetivo o estudo da Commedia dell´Arte e suas influencias na formação do ator. Ela realizou um panorama historico dos personagens-tipo , vindos da comedia latina , das atelanas passando pelos Mimus e Pantomimus. Iniciando a genêse dessa escola que foi pioneira na apresentação da mulher em cena e na profissionalização do oficio do ator, apresentamos Angelo Beolco e sua obra que criou uma companhia, um tipo marcante –Ruzzante- e escreveu várias comédias. Beolco foi grande inspiração dos comicos a criarem suas companhias dell´arte como por exemplo, Ser Maphio de Veneza. E essa cidade foi o símbolo dessa escola ou academia de teatro. Que constamos sua importancia na formação de uma escola de intepretação e de espetaculo. Formou um pensamento de entretenimento no séc.XVI e, possibilitou a criação de uma poderosa indústria que, saindo da Itália, vai “ contaminar” toda a Europa , desde a França até a Rússia. E depois, influencia diretamente o teatro de Molière , através do seu mestre Tibério Fiorilli. Nos utilizamos de uma revisão bibliográfica na lingua original dos comicos assim, encontramos documentos como cartas e relatos de padres que narravam como eram os espetáculos da Commedia dell´Arte. Essa pesquisa também se valeu de entrevistas, participação em palestras e espetáculos para analisar seus métodos práticos com essa escola. Concluimos que ainda na contemporaneidade , a academia dell´arte é uma forma de espetáculo potente , enquanto improvisação e, uma escola de formação para o ator de teatro. 

CAPITULO I - ATELANAS, MIMUS, JOGULATORES E BUFÕES: I NONNI – OS PRECURSORES DOS CÔMICOS DELL´ARTE 

1.1. Fábula Atelana 

O Séc. II A.C., os atores da farsa popular de Atela (antiga cidade na região de Campânia, no sul da Itália) haviam ido em bando para o norte na direção de Roma. A Fabulae atelanae - ou farsa atelana, como os ingleses a chamam, justificando que seria melhor caracterizada como farsa - era uma espécie rústica de teatro vinda da cidade de Osca. Essa rusticidade era patente em suas máscaras grotescas e no vigoroso atrevimento de seus diálogos improvisados. Nesse contexto, temos uma semelhança comparativa com a improvisação tipificada da Commedia dell´Arte. A fábula atelana era caracterizada pelos tipos fixos e entre os mais famosos estão: Maccus – malicioso e desajeitado -; Bucco – gordo e simplório -; o velho Pappus - bondoso, mas cuja velhice era objeto de escárnio -, e Dossenus – filósofo glutão e corcunda, alvo favorito das gozações dos iletrados camponeses. 


Diomedes descreve a farsa atelana como um terceiro tipo da comédia latina e realça que, desde que essas peças foram feitas em Osca9, cidade de Atella, foram estilizadas como Atellanae; no tema, na linguagem e no estilo cômico eles tinham as mesmas caracteristicas do drama satírico grego (NICOLL, 1963a, p. 66. Tradução nossa) 


Oscan, cidadão de Osca - cidade próxima a Roma (Itália). Osco – foi uma língua indo-europeia pertencente ao grupo de línguas itálicas, falada na parte centro-meridional da península itálica durante a Antiguidade (Disponível em Dicionário Aplicativo IOS-Babylon. Acesso em 10/04/2014). 
Figura 1- Maccus. Fonte: Duchartre, 1963 , p. 193. 


Das três formas de expressão do dramático, a tragédia, a comédia e a sátira, os romanos aperfeiçoaram a tragédia e a comédia diretamente do modelo grego, salvo por pequenos experimentos. 
Existiam duas teorias sobre a origem da fábula atelana: a primeira, de que surgiu em Atella e foi originalmente feita por performers oscus para o próprio público, falada em língua osca tendo sido, mais tarde, levada a Roma e lá latinizada; a segunda, de que a pátria desse teatro é latina, com características de barbarismo e de festa. Como foi dito, as atelanas foram muito populares em Roma e não há evidências de que foram modificadas em relação à origem em Atella. As peças eram muito curtas (Atellaniolae). Dois nomes se destacaram e deixaram suas peças na história com a dramaturgia atelana do séc. I A. C: os romanos Pompônio (Pomponius Bononiensis) e Nóvio (Novius), que proporcionaram métrica à farsa rústica e obscena das atelanas, mas conservaram o dialeto dos camponeses latinos, assim como sua expressividade campesina. 
Alguns eram personagens nomeados com caracteres fixos, como Maccus; outros eram, na maioria, indicados pelos papéis sociais, como Ergastilus (escravo na prisão), Piscatores (pesadores) e Medicus (médicos) e máscaras de animais como asno, galinha etc, que remetiam às velhas mascaradas de animais, colocando todos no mesmo caldeirão para realizar a farsa atelana com tipos nacionais e não regionais de Atella ou Roma. 
Analisando a lista de personagens de Pompônio, a maioria advém da vida cotidiana, do dia a dia, assim como,o escárnio aos estrangeiros não era incomum nas atelanas. A brincadeira com a mitologia antiga – às vezes, o tipo mais comum de sátira – sempre no início do espetáculo para introduzí-lo ao público das Atelanas. Como exemplo Hercules coactor (Hercules mercenário) e Mortis et vitae iudicium ( O julgamento da vida e da morte) . 


Ambos os dramaturgos Pompônio e Nóbio foram introdutores do estilo das atelanas em Roma. Este último foi muito elogiado (NICOLL, 1963a, p. 69): “Atellanrum probatissimus scriptor”11. Os dois escreveram quarenta e quatro peças teatrais com títulos que indicavam sujeitos da vida cotidiana: Agricoal e Fullones (um faz tudo) eram tipos típicos. 
Os atores atelanos apresentavam-se em festivais de teatro estatais e davam um final cômico e grotesco às peças históricas sérias e às tragédias nos “Ludi Romani”, segundo Berthold (2000, p. 162), essa estratégia era “para ajudar a secar as lágrimas”. 
A famosa farsa atelana sobreviveu às tragédias e às comédias, esteve presente em todo o Império. mas perdeu terreno para os mimus, na época dos últimos imperadores romanos. Um destaque importante e perspicaz foi que as máscaras atelanas possuíam verrugas que sinalizavam uma ocorrência de anormalidade física dos cidadãos da região da Campânia: 
Mas ela penetrou todas as províncias do Império Romano e provavelmente conservou os principais tipos fixos da farsa da Campânia. Isso é sugerido, em primeiro lugar, pela circunstância de que as máscaras de todas as partes do mundo, de Creta, por exemplo, a Tarento e à Germânia, são extraordinariamente parecidas. Em segundo lugar, há o detalhe de que em todas essas máscaras se repete sempre uma verruga na testa. Tal excrescência tornou-se conhecida, na Antiguidade, como a doença da Campânia... O fato de as máscaras farsescas romanas reproduzem essa anormalidade, toda como cômica, prova ao mesmo tempo que a farsa romana baixa foi influenciada pelo mimo universalmente popular (BIEBER apud BERTHOLD, 2000, p. 162).


1.1.1. Acervo de atelanas 

1.1.1.1. Bucco 


Estudamos quatro tipos Oscan que Diomedes (NICOLL, 1963a) classificou como sendo os mais característicos desse tipo de teatro. Nos títulos das peças de Pompônio temos Bucco auctoratus (Bucco sob juramento) e Bucco adoptatus (adotado). A peça Arupex (o advinho/ 
profeta) nos proporciona um exemplo de suas características marcantes na sua fala: “Alguém: Bucco, observe e faça um trabalho limpo sobre isso! Bucco: Claro que farei. Você não vê que eu acabei de lavar minhas mãos? ” (NICOLL, 1963a, p. 69. Tradução nossa)

Essa simples frase mostra como Bucco era tolo. Nesse sentido, existe uma referência forte de Plauto em Bacchides - “bobo, idiota, servil e buccos”13. E Bucco é uma variação do nome bucca- boca, face ou bochecha - “(...) ele estava com a bochecha inchada”(NICOLL, 1963, p. 69)14. Uma outra tradução para o nome que Graziani (apud NICOLL, 1963) apresenta é “gordo e boca suja”, proveniente de Bucculus que foi o título de uma das peças de Nóvio. Já Schanz e Dieterich (apud NICOLL, 1963a) acham que Bucco seria “um tagarela, um falador”. Dieterich (apud NICOLL, 1963a) disse: bochechas grandes é um sinal de tagarelas e fofoqueiros15. (NICOLL, 1963a, p. 69). Também, Dieterich (apud NICOLL, 1963a) o chama de “porco buccolato”, comparando e conectando-o com esse animal. Com isso relacionamos o conceito de mascaramento de Donato Sartori entre a semelhança zoomórfica e os caráteres tipológicos na construção das máscaras dell´arte , nos remetendo ao Dottore (glutão e falador) da Commedia dell´Arte. 

1.1.1.2. Dossennus 

Novius, Duo Dossenni, Manducus são nomes que provêm das palavras mandier, mandendo, manducare (mastigando). Desse modo, nas atelanas, Dossennus é chamado de Manducus – aquele que faz algo comendo ou que sempre está mastigando. E Dossennus vem diretamente do latim dorsum, significando corcunda (humpbacked). O nome Manducus tem o sobrenome de Dossennus, que segundo Sitt (apud NICOLL, 1963a, p. 70), seria essa criatura terrível e corcunda com dentes proeminentes que rangem fazendo barulho. Muitas máscaras com esse tipo de nariz adunco e dentes acentuados foram identificadas semelhantes à Manducus em locais como Alemanha, Holanda, sul da Itália (Torento) e Creta. 
Já na figura 4 há um cognato da máscara, proveniente da mesma origem, só faltando a verruga. Isso demonstra algumas variações de Dossennus-Manducus, enquanto máscara e caráter tipológico, como existe em algumas diferentes máscaras de Arlecchino e Pulcinella da Commedia dell´Arte . O mesmo aparece na semelhança da figura 5, que ilustra Manduccus das atelanas. 
Nicoll (1963) propõe que Dossennus e Manducus possuem o mesmo caráter nas atelanas. Dossennus, gordo e corcunda, com nariz adunco e verruga, segundo Nicoll, seria uma referência à Pulcinella, discutido por Duchartre (1966,p. 71), pois Pulcinella também é corcunda, narigudo e apresenta verrugas na máscara. Dossennus era um bobo sagaz, esperto e sarcástico, provocante e ousado17 . Sêneca disse numa carta: “Estranho, fique e aprenda com a sabedoria de Dossennus” (NICOLL, 1963a, p. 71)
Provavelmente, ele aparece como em algumas variações de personagens cujos diferentes caracteres sociais poderiam apresentar-se como professor ou como um funcionário público parasita. 

1.1.1.3. Maccus 

Segundo Diomedes (NICOLL, 1963a), Maccus é um dos tipos mais comuns das máscaras “Oscan”. Possui origem grega Makkon, que significa “ser estúpido” (NICOLL, 1963a, p. 72). Surge na Sardenha e na Sicília (Itália) como Maccu (que significa prêmio de consolação) e Macco, que, segundo Lucilius, significa milho. Dieterich associa a palavra macco com macaroni – “comida feita de carne, queijo e manteiga; comida rústica e rude”, sugerindo que a palavra foi transferida ao personagem pelas suas características. Em outras palavras, Maccus forma um tipo estúpido, rústico com um gosto para comida pesada, indigesta, gordurosa. No entanto, Maccus não era glutão e seu caráter principal era ser idiota, bobo, o que nos remete às caraterísticas tipológicas de Arlecchino como representante dos tolos junto a Bucco, em apologia à peça de Pompônio: Apuleius e Maccus exul. Mas nada é certo sobre sua aparência. Calvo (mimus calvus), um careca tolo. Ele carrega um manto e parece ter cara de bobo. 
Como Dossennus, Maccus aparece provavelmente na variedade de papéis das peças dos dramaturgos mais proeminentes anteriormente citados. Na lista de Pompônio, aparecem Maccus gemini (gêmeos), Macci priores (o principal), Maccus miles (soldado), Maccus sequestre (um árbitro), Maccus virgo (um criado). Novio (NICOLL,1963a) classifica Maccus copo como um dono de pousada e Maccus exul como um exilado. Buffalmacco aparece como um personagem cômico em Decameron (séc. XIV), na terceira novela de Boccaccio (1971), na qual veste-se com uma áspera capa e com uma máscara de um “demônio”, cheia de chifres e cornetas. 

1.1.1.4. Pappus 

Pappus foi o último dos quatro caracteres mencionados na Antiguidade que pertenceram à Fábula Atelana. Seu nome aparece em, no mínimo, cinco títulos de peças de Pompônio e Nóvio, sendo elas “Pappus agrícola (do campo), Pappus praeteritus (Pappus superado), Hirnea Pappi (Pappus corcunda), Sponsa Pappi (casamento de Pappus). O nome Pappus vem do grego “pappos” e é claramente a parte do velho (Papa), estúpido e divagante, perambulante, vagabundo, enganado pelos seus jovens companheiros. Pappus nada mais é do que o velho dos mímicos antigos adaptados para o ambiente Osco e romano. Existe uma coleção de novelas de Giovanni Boccaccio, provavelmente composta entre os anos de 1349 e 1353, é uma das obras primas clássicas da prosa italiana. Enquanto romântica em forma e tom, ela cai na sensibilidade medial, no cerne da condição humana de superar as dores e dificuldades até mesmo a riqueza, pois conta a história de dez jovens fugindo de Florença por causa peste medieval que assolava o continente europeu (Encyclopaedia Britannica , aplicativo Ipad. Acesso 15/04/14). 20 “O tal Calandrino gastava a maior parte de seu tempo na companhia de outros dois pintores, um deles chamado Bruno e o outro Buffalmacco, ambos sujeitos muito alegres. Apesar disso, eram também precavidos e espertos. Os dois gostavam da companhia de Calandrino, pois muito se divertiam, com frequência, pelos modos e pela ingenuidade dele” (BOCCACCIO, 1971). 

1.1.1.5. Cicirrus 

O velho Pappus, o malicioso Dossennus, o ganancioso Maccus, e o estúpido e falador Bucco, devem ter tido muitas celebrações em Atella e em Roma, mas com esses quatro tipos podemos incluir um quinto, creditado ao autor Dieterich (apud NICOLL, 1963a, p. 74), chamado de Messius Cicirrus, um tipo “galinha/galo”. Isso remete aos animais da Ática em séculos anteriores (ver figura 11). Já que Pompônio e Nóvio colocavam títulos de animais em suas peças também: Asina (fêmea do Asno) e Asinus (macho), provavelmente um tipo (figura 12) recorrente nas atelanas. Isso pode ser comparado ao caráter zoomórfico dos tipos da Commedia dell´Arte como aparece no canovaccio de Dario Fo (1998), cuja figura dos animais asno e leão surgem como tipos importantes, trazendo uma reviravolta na trama. 
Tendo em vista o mascaramento de animais, ou criação de tipos fixos a partir deles, os papéis cômicos eram feitos normalmente com o uso da Máscara nas atelanas, que estava presente anteriormente nos mimos gregos e depois nos mimus romanus. Essa máscara tinha objetivo de exagerar o rosto humano para dar efeito cômico. O ator Datus das Atellanae foi banido por cantar em grego a morte de Claudius e Agrippa. Isso revela quatro características: o uso do grego como fala das atelanas em Roma; a introdução musical na representação farsesca; o privilégio da improvisação para que a qualquer preço deve fugir da censura; e, por fim, a tendência de sátira indo até onde fosse permitido politicamente. Nesse caso, ilustra um episódio em que o imperador Calígula mandou queimar no meio do teatro um dramaturgo das atelanas por escrever versos ambíguos, satirizando sua figura pública. Tal fato evidencia que a principal característica dos atores das atelanas era fazer intrigas (tricae), novamente relacionadas a posteriori a Commedia dell´Arte, como seus episódios ou lazzi; pois essas tricae eram um estoque de intrigas, situações ou cenas de ação e de jogo, mas há poucos registros disso segundo Allardyce Nicoll (1963a, p. 76). Somente podemos fazer uma ideia de que foram introduzidos episódios da vida cotidiana exagerada e satirizada que não dispunham de refinamento. A Farsa Atelana se tornou popular e em Roma, era feita tanto por amadores como por profissionais. O mais recente que podemos achar do espírito das atelanas está em o “Balli di Sfessania" de J.Callot24 (NICOLL, 1963a, p. 78). Isso se conecta às rústicas e pagãs festividades medievais que a Igreja nunca conseguiu censurar. 
Por fim, as atelanas apresentaram um repertório de tipos: o gordo, o falastrão bobo, o malicioso, o estúpido, o bobo glutão e rústico, o velho e o tipo galo. Esses tipos influenciaram todos os teatros cômicos, farsescos e satíricos vindouros do teatro ocidental, alterando os nomes e seus modos de comunicação, mas preservando sua essência cênica que se estabeleceu na Europa renascentista com a Commedia dell´Arte. Esta série não foi uma tentativa de documentar a Commedia dell'arte, como se pensava, mas sim uma dança do tipo geralmente conhecida como Moresca (simbolizando o conflito entre os mouros e os cristãos). Jacques Callot (nasceu em agosto de 1592, em Nancy, França; faleceu em março de 1635, em Nancy) foi um ilustrador francês, um dos primeiros grandes artistas que exclusivamente praticou as artes gráficas. Sua inovadora série de impressões que documentam o horror da guerra influenciaram fortemente artistas dos séculos XIX e XX. Sua carreira foi dividida em um período Italiano (c. 1609-21) e um período françês (Lorena -França), a partir de 1621 até a sua morte. Ele aprendeu a técnica da gravura com Philippe Thomassin, em Roma. Em 1612, foi para Florença e, nesse momento, os Medici o patrocinaram quase exclusivamente para retratar as festas e espetáculos sofisticados de rua. Ele conseguiu desenvolver um estilo naturalista, ao mesmo tempo em que preservava a artificialidade da ocasião, organizando uma composição como se fosse uma definição e uma redução de pequena escala. Isso exigiu uma excelente gravação técnica. Sua amplitude de observação, a animada figura estilo e sua habilidade em montar uma grande multidão se acotovelando garantiu para suas gravuras populares uma duradoura influência por toda a Europa. Callot tinha também um gênio da caricatura e do grotesco. Sua série de gravuras como, por exemplo, o Balli di Sfessania, o Caprices of Various Figures, e o Hunchbacks são geniais e pitorescos e mostram um olho raro para detalhes factuais. 
As atelanas, por sua vez, nos deixaram seus tipos: o gordo, o falastrão bobo, o malicioso, o estúpido, o bobo glutão e rústico, o velho e o tipo galo, entre outros. A correspondência dessas figuras é verdadeiramente notável e quando se tem em conta o fato de que existe prova do drama Dorian, assim como a comédia Ática, tão notável é o aparecimento de tipos semelhantes nas peças de Aristófanes e mais tarde dos dramaturgos que patrocinavam o estilo 'novo' da comédia (...). O drama literário continuou sua própria carreira, mas isso é a essência do ator de teatro da Antiguidade - isso passou de geração para geração, mudando seus nomes e seus meios, mas preservando fundamentalmente seus traços, que foram estabelecidos nos obscuros dias antes da história começar, justo em nossos tempos, o mambembe bonequeiro e o popular palhaço preservaram algo da tradição que foi totalmente estabelecida no Renascimento europeu pela commedia dell´arte. (NICOLL, pp. 7879, 1963a. Tradução nossa)

1.2. MIMO E PANTOMIMA 


Os mimos tinham esse nome por serem imitadores que usavam falsos rostos ou máscaras. Na Espanha eram chamados de momos ou remedadores. Um personagem era chamado como quem o representava na comédia, e muitas vezes o ator representava várias personagens. Existiu um ator chamado Mimus, e não há dúvidas de que tinha esse nome por causa da sua profissão (NICOLL , 1963a, p. 158). Isso relaciona- se com a Commedia dell'Arte, pois os atores dell´arte também eram chamados pelos nomes de suas personagens e vice versa, como Isabella Andreini deu o nome a famosa Enamorada Isabella, e outros cômicos chamados de Pulcinella, Arlecchino (Tristano Martinelli) etc. Eram famosos e tradicionais no Oriente, principalmente em Constantinopla. Em descrições de Johannes Signiensis datadas do século X e do século XII (NICOLL, 1963a, p. 160), em Constantinopla, diziam que havia um mimo com roupas coloridas e costuradas de retalhos, como seria o figurino de Arlecchino no século XVI. Ao contrário dos atores atelanos, os mimus romanus não usavam máscaras, pois eles não necessitavam nada mais do que sua versatilidade e sua arte da imitação, ou seja, sua mimesis. Isso demonstra que o discurso, o texto e a fala eram acessórios dos espetáculos dos mimos. Aqui não me refiro ao conceito de Mimesis de Platao, pois a etimologia de mimese - do grego mímesis, “imitação” (imitatio, em latim), designa a acção ou faculdade de imitar; de fazer uma cópia, reprodução ou representação da natureza, o que constitui, na filosofia aristotélica, o fundamento de toda a arte. 
Existiam várias denominações que apresentavam os mimos: no baixo alemão, a palavra mumme significa máscara e momar (mimar) que denotava um “bobo siciliano que rapidamente desperta a ira” (NICOLL, 1963a, p. 159. Tradução nossa). E eles também foram chamados de sanniones pelos romanos. Segundo Berthold (2000, p. 162), este é um apelido que parece ter sobrevivido nos Zanni da Commedia dell´Arte. E o senador romano Cícero declarou (SMITH, 1912, p. 23): “Pode haver algo mais ridículo do que o Sannio? Que ri com a boca, o rosto, os gestos zombeteiros, com a voz, e até mesmo com todo o seu corpo?”. Nos Ludi Romani, os sanniones tinham permissão para estender sua cortina branca através da cena e apresentar suas sátiras nos intervalos entre as tragédias e as comédias. E a partir de 173 A.C., os Ludi Florales (festival da primavera) tornaram-se uma grande oportunidade para difundir a arte teatral dos mimos. Enquanto que no circus maximus, bem próximo ao templo da deusa Flora, bodes e lebres eram incitados em vez de feras (leões, panteras, tigres etc). Os mimos honravam a deusa com bufonarias fálicas e grotescas e com o atraente encanto feminino. O mimo foi, desde o princípio, o único gênero teatral na história do teatro ocidental em que a participação da mulher em cena não era um tabu, uma proibição. 
Então, a mima era uma dançarina que exibia sua flexibilidade acrobática nas Florálias, dançava nua da cintura para cima, homenageando a deusa Flora. E esta mima tinha os mesmos atributos da atriz do mimo de Bizâncio, com quem o imperador Justiniano dividiu seu trono e a fez imperatriz do Império Romano, mesmo com um decreto denegrindo a reputação dos mimos e desprezando quem tivesse relações sociais com eles. No entanto, somente um imperador estaria acima das leis e dos costumes vigentes. 
Os mimos representavam à beira da estrada, numa plataforma de tábuas ou na scaenae frons do teatro romano (uma construção que servia de pano de fundo e coxia aos atores gregos e romanos). Usavam roupas comuns de homens e mulheres das ruas (farrapos) ou seda e brocado quando conseguiam os favores de algum patrono rico. Vestiam uma roupa de retalhos coloridos – mimus centunculus – assemelhando-se, posteriormente, com o figurino de Arlecchino- e também um chapéu pontudo (Apex) – e este com o chapéu de Pulcinella (RICCOBONI apud SMITH, 1912) argumenta e dá suporte a essa teoria de que Arlecchino segue na linha da ancestralidade sobrevivente do mimo. Eles usavam somente uma sandália leve nos pés, diferente do cothurnus do ator trágico e o soccus do comediante. Essa sandália lhe valeu o apelido de planipede em Roma. Outra versão do gramático romano Donato dizia que o mimus era chamado de planipedia porque seus temas eram tão vis e os atores tão baixos e grotescos que só poderiam agradar aos libertinos e aos adúlteros. O diretor ou o ator principal de uma troupe de atores de mimos era chamado de “Archimimus”. Era este archimimus quem supervisionava a peça e determinava seu desenvolvimento, se ela seguia um texto literário ou se improvisava-o. 
Mas, como lembra Berthold (2000, p. 163): “A improvisação exigia um equilíbrio muito preciso no fio afiado da palavra, especialmente na época dos imperadores e das competições por seus favores.” Nesse momento histórico do teatro, a habilidade do ator determinava o sucesso do espetáculo teatral e estava dissociada da obra dramática do poeta-dramaturgo e se torna patente outra forma semelhante da escola dos mimos para os cômicos dell´arte. 
Pantomina é a arte da dança interpretativa. Essa é a diferença entre pantomima e mímica. Os gregos normalmente usavam a palavra “orchestes” para designar o ator nesse tipo de drama, e esse termo continuou sendo usado por muitos séculos, particularmente no “inheritors” na tradição grega em Bizâncio. Em Roma, contudo, os performes ou também chamados saltadores (dançarinos) usavam mais o estilo pantomimi de que o estilo grego. Essa dança era acompanhada de música, e esses tipos acompanhados por cantores e coro. Hyla (famoso ator pantomímico) dançava a música composta por Macrobius. 
A grande distinção da pantomima para outras formas teatrais é caracterizada por um único ator executando vários papéis numa só apresentação cênica. As máscaras certamente eram usadas pelos performers e aparentemente essas máscaras eram trocadas para mudanças de personagem. A máscara de pantomima era diferente das máscaras teatrais comuns porque não tinham boca aberta. 
E também, a pantomima deve ter assumido a forma da dança moderna e do ballet clássico. Devido às diversas línguas no continente europeu e no domínio do Império Romano, o grande sucesso da pantomima ocorreu por causa da expressão corporal e dos movimentos dançados que acolhia diferentes plateias com diferentes línguas, constituindo a pantomima a estrela teatral daquela época. Um fato curioso marca esse momento apontado por Berthold (2000, p. 163): “Quando o imperador Augusto baniu de Roma o pantomimo Pilades, houve tamanho protesto popular que ele foi obrigado a logo revogar a sentença e chamá-lo de volta do exílio”. 
A partir de 22 A.C. graças a Pilades, as pantomimas passaram a ter o acompanhamento musical regular de uma orquestra, pois antes havia apenas poucos instrumentos no acompanhamento da pantomima. O grande orador Quintiliano louvou a pantomima: 
Eles podiam falar suplicar, prometer, clamar, recusar, ameaçar e implorar; expressam aversão, medo, dúvida, recusa, alegria, aflição, hesitação, reconhecimento, remorso, moderação e excesso, número e tempo. Não são eles capazes de excitar, acalmar, suplicar, aprovar, admirar, mostrar vergonha? Não servem, como os pronomes e advérbios, para designar lugares e pessoas? (BERTHOLD, 2000, p. 164). 
A arte da pantomima é universal, sua manifestação pode ser entendida por pessoas de diferentes culturas e nas diversas tradições teatrais. Ela está presente desde Chaplin, Marcel Marceau, ao teatro oriental, como Kabuki. No teatro balines, seus códigos são os mesmos em qualquer época da história teatral, sua linguagem sem palavras se espalhou de Roma para todas as regiões do Império Romano e influenciou definitivamente os cômicos dell´arte nos lazzi, por exemplo. Os mimus e pantomimus foram celebrados e cortejados, porém também ficaram sujeitos à excomunhão da neófita Igreja Católica, pois os cristãos eram alvos constantes de suas sátiras. Como um clérigo disse registrado por Berthold (2000, p. 167): “Se os mimos e pantomimos desejam se tornar cristãos, deverão primeiramente abandonar sua profissão”. Essa frase caracteriza uma época posterior ao sucesso dos mimos, a nova religião foi alvejada incansavelmente por esses artistas e o império romano. A Igreja Católica Apostólica Romana condenava os hábitos do escárnio e de sátira dos mimos por serem, de certa forma, sensuais e insolentes. 

1.2.1. Mimo Cristológico

A severidade com a qual a Igreja se opôs a todas as formas de spectaculum por mil anos, baseou-se em situações históricas bastante concretas. Um rancor guardado a sete chaves. 
Desde seus primeiros dias, o Cristianismo não havia sido apenas perseguido pelos imperadores romanos, mas também achincalhados pelos mimos. O mimo bajulava igualmente os governantes e o povo; não diferenciava entre parodiar os deuses antigos e ridicularizar os seguidores de uma nova fé cristã. Colocavam a figura do cristão na lista de tipos tradicionais. O batismo, por exemplo, que expressa à conversão ao Cristianismo, era tema constante dos mimus. A adoração apaixonada dos cristãos sempre esteve próxima à crucificação, assim, o mimo cristológico assumiu como tema o martírio. Muitos mimos se converteram à nova fé, como Porfírio, em 275, em Cesaréia. O mais famoso foi o ator Genésio, que se converteu em Roma no ano de 303, no reinado de Dioclesiano e numa época de perseguições duras aos cristãos, de forma que o ator Genésio foi vítima e, consequentemente, morto. Assim, a Igreja católica tornou-se padroeira dos atores. Os mimos são como um fio que vai dos primórdios da Antiguidade, através de Roma e Bizâncio, até a Idade Média. Era tão familiar ao homem da rua quanto ao erudito em sua mesa de estudo. 

1.2.2. Mimo em Bizâncio. 

Os mimos seguiam a tradição do repertório baseado na mitologia grega e romana. Mimus e pantomimus eram acompanhados por um solista trágico que calçava um alto coturno de madeira com solos declamatórios. Essa figura trágica continha as exageradas mangas largas e longas pelos quais se enfatizava o movimento de braços e mãos. Isso lembra as mangas longas e folgadas de Pulcinella, que as usava para fazer graça num momento cômico. 
Exemplo disso é a cena de Le Capitaine Fracasse, adaptado e filmado por Ettore Scola - Il viaggio di Capitan Fracassa. A referida cena aparece no final, quando a trupe se apresenta ao público e Pulcinella diz: “Signor sire, così mi fate cadere le braccia” - deixa cair as mangas longas e a plateia ri com entusiasmo. Também em Bizâncio, as mimas dançarinas que retratavam Salomé com braços e seios nus: “Elas brilhavam em ouro e pérolas, e usavam os mais suntuosos trajes. Dançavam , riam e cantavam com vozes doces, sedutoras” (Berthold , 2000, p. 175). O curioso repertório dos mimus encontra referência na Commedia dell´Arte (Il vechio geloso) e nas comédias de Molière (“Escola de mulheres”): o ciumento marido de cabelos brancos e a suposta infidelidade de sua jovem esposa, constituíam uma receita bem comprovada de sucesso, retirada do repertório dos mimus. No que se refere ao primitivismo do Mimo Giullaresco, a parte representativa era todo o motivo que não se fazia realizar em coro. Em grupo, é nulo: assim os bufões, com a intenção de suscitar a aprovação tosca dos espectadores reunidos na praça ou na corte, tinham presente somente os motes da mais pronta inteligência: o lamento das mal casadas nos monólogos ou o choro pela partida do seu amado. Nos diálogos, fingia alterar as personagens, ou até mesmo um companheiro ou companheira lhe dava a réplica – aventura do cavalheiro ou do cidadão que conquista a bela menina caipira, sempre jogando com o ridículo dos contrastes. Era um mundo de paixões simples e de pronta cobiça, que não aparecia obra de preocupação intelectual. Não é que o mundo da Idade Média fosse pobre intelectualmente e sentimentalmente, mas as representações eram reduzidas a poucos gestos, a poucas indicações cenográficas, a poucos signos alusivos, empobrecidos, tornando-se ingênuos, vulgares, obscenos, grotescos. O bufão, o bobo da corte, era uma personagem da pequena sociedade cortesã que o tinha como seu poeta satírico e seu comediógrafo, que podia representar todo tipo de comédia, das quais todos cortesãos, camponeses – rudes e cidadãos eram papéis, às vezes, também os juízes, os bêbados e os medrosos. O tema das comédias era o deboche sobre quem escorregava na perspicácia e na inteligência, de certo modo ligeiro, astuto e árido, ou a sátira de quem não queria ou não sabia se adequar ao modo de vida intrínseca e pávido da corte. Nas festividades carnavalescas e na vida da corte, os fragmentos cômicos encontravam se em dois lugares distintos e oportunos para atuarem e coordenarem-se; tratava-se de um organismo primitivo quase com dois gêneros literários, de um momento em que a comicidade carnavalesca tinha tipos grotescos bem distintos dos caracteres satíricos da comicidade cortesã. Certo que aquela representação não era separada da ordem prática, mas tanto no carnaval como na cúria, havia algo de notável, enfim, qualquer coisa de irreal e fantástico. 
A comicidade carnavalesca é diversa da comicidade cortesã, pois na primeira o grotesco prevalece mais despojado e livre. Assim como na Commedia dell´Arte tudo era imutável nas figuras e nas máscaras, a giulleria (brincadeira, sátira, zombaria) restrita na sua tradição cômica representativa, identificava a coisa representada com a pessoa que a representava. O público atribuía a peripécia da personagem ao ator-mimo. E como os mimos tinham um “nome de guerra” - e esse era originário de uma história ou cena - eles igualmente fingiam ser na vida real aquele ou este personagem. Uma história confluía em outra história e assim o "bobo" se tornava mito. Quando um artista morria, seu mimo vivia em outro, sua obra era transferida e continuada, como Cielo D'Alcamo ou Camo, mimo que era de fato uma máscara - no sentido da tipologia e não do ascessório máscara – assim como o bufão Gonella. O cômico não é a representação do isolamento atuado dentro de uma esfera. Se não se exagera fragmentismo de situações cômicas, não há comédia. (APOLLONIO, 1982, p. 12). 
Barbieri, em “La Supplica”, trata de diferenciar o riso do cômico, do bufão, da comédia e da bufonaria; o cômico coloca o riso na condição dos discursos, e o bufão no fundamento de suas ações e operações/atividades. 
A sociedade eclesiástica e intelectual observava e desprezava a desordem, a anarquia do carnaval como um escárnio cortesão. A comicidade carnavalesca e bufonesca eram imediatas e irreflexas entre a cultura laica italiana, potencialmente idealista, intensa por criar um mundo feliz e contente para contemplar pacatamente, gabando-se de ser livre de qualquer exigência prática. O escárnio e a sátira, ao contrário, prendiam-se aos seus objetos e adoravam projetar novelisticamente o mundo cômico ao externo. Um grande exemplo disso está em Decameron de Boccaccio, que narra os episódios da comédia humana. No carnaval e nas festividades medievais existiam figuras diabólicas que eram os precursores de Zanni. O baile do maligno é um exemplo de festividade carnavalesca nas cidades europeias com muitas figuras demoníacas nas festas populares, satirizando o homem e seus pecados. Tudo era expresso pela dança dos bobos da corte, que transcendiam o mundo cotidiano, levando um coro de pessoas a festejar mergulhados numa alegria e ignorando o rito religioso. 
O coro carnavalesco dos plebeus era de tudo intenso, ridículo, enorme. Tinha o seu lugar num caso estilizado com entusiasmo bárbaro, com fantasia grotesca, figuras, linhas, sons, palavras, como sendo essas suas formas características. Menos intensa era a comicidade das cortes nos palácios nobres, que por ser ela mesma um espetáculo, tanto nas cerimônias solenes como nas reuniões alegres, tratava-se de uma vida organizada polidamente. 
Nicolò Barbieri cômico dell´arte nascido em Vercelli (Itália) em 1576. Publicou La Supplica, um tratado sobre seu percurso artístico-profissional. 40 Auto de Nedhairt. 

CAPÍTULO 2- COMMEDIA DELL´ARTE INÍCIO : CARNAVAL E RUZZANTE. 

2.1- Carnevale – A festa da carne. 

O carnaval medieval tinha um tratamento demoníaco na festa popular com os faunos (diabos gregos), e na festa báquica dos sátiros – as saturnales – no intuito de rebelar-se contra a autoridade eclesiástica (Igreja Católica) no período de carnaval. O retorno romântico à simplicidade primitiva e a rebelião contra as regras da vida eclesiástica, feudal e citadina conduzia ao simulacro do “Uomo Selvatico” que nu, coberto de pêlos, estranho e bizarro que passeava no meio da algazarra, era pai ilustre e amoroso dos Zanni dell´arte. A tradição demoníaca do Carnaval passou diretamente à Commedia dell' arte. 
A lenda do “Uomo Selvatico” é muito difundida ao longo dos Alpes e dos Apeninos. O homem selvagem aparece como um verdadeiro e próprio homem, dotado de racionalidade, muito ingênuo e simples, e até superior ao homem civilizado em alguma atividade, principalmente nas artes caseiras - o fazer do queijo, por exemplo. A primeira característica recorrente no aspecto do homem selvagem apresenta seu corpo todo recoberto por um grosso pelo, e por isso não usa roupa ou vestimenta alguma. Proveniente de diferentes lugares, as numerosas histórias de que o homem selvagem aparece como um mestre na arte do queijo e ensina os homens civilizados a fazer manteiga e queijo; e esse ensinamento se interrompe antes de revelar o último segredo, aquele que tira a cera do soro do leite (que existe na ricota, por exemplo). Em Valle d'Aosta, existe uma lenda do homem selvagem que, depois de ter ensinado a produzir vários tipos de queijos, quis explicar ao homem como seria útil retirar o soro do leite de uma flor, a nigritella; mas os homens mostraram-se pouco interessados e gentis, achando absurda essa operação, então o homem selvagem foi embora, sentindo-se ofendido e não revelou o segredo que iriar revelar. 
Essa figura do Uomo Selvatico servia para amedrontar as crianças. Em quase todas as lendas ele é um ser pacífico. Também virou máscara de carnaval. Em 1491, na festa de casamento de Afonso d´Este com Anna Sforza e Lodovico Mono com Beatrice d´Este, os criados vieram fantasiados de “Uomo Selvatico”. Na província de Sondrio, Itália, fim de 1975, desfilavam “omen del bosk, femmena del bosk e bagon ( filho) del bosk”. Isso nos dá a dimensão das origens e semelhanças com Zanni, que também vem das montanhas e era simples e pacato, mas sábio. 
Na apologia ao herói daquela cultura fragmentária e dispersa, o bufão, o jogulator, o mimus, o histrião, o charlatão era um tipo de artista especialista em várias formas de entretenimentos fugazes, depreciativos. Na realidade, depositário de um último germe de vida artística que nasceu em terreno fecundo, pois era cantor, tocava vários instrumentos musicais, era mímico e divertia muita gente dançando sobre a corda bamba ou cuspindo fogo, mas também cantava a epopeia de Orlando. 
O carnaval e outras festas populares eram um motivo para distrair das fadigas cotidianas, um relaxamento dos costumes e uma expressão sincera e tumultuosa de um único sentimento coletivo de que eram capazes aquelas pessoas simples. Eles aproveitavam tudo o que era ridículo: nas danças e vestimentas grotescas, sons e palavras como signos que faziam parte da vida popular. Menos intensa era a comicidade da corte, pois nela já existia o espetacular nas cerimonias e reuniões solenes, uma vida organizada aulicamente. A alegre orgia da festa plebeia era substituída pela pacata vida da corte: mimos, saltimbancos, bufões eram aceitos com prazer, mas, provavelmente, sem aquele entusiasmo excessivo e perigoso que a plebe tinha dos seus espetáculos. 
Na Idade Média, séc. XII, por exemplo, a pequena sociedade cortesã tinha no bufão o seu poeta satírico e seu comediógrafo, cujas personagens eram os cortesãos. Os temas das comédias eram a sátira, a brincadeira - que faltava naquele mundo prático, sagaz e árido - ou a sátira de quem não queria ou não sabia enfeitar aquela vida entristecida e pávida da corte. Era o que os bufões e os mimus faziam de forma singular e desorganizada visando a um sucesso imediato, mas já preparando, nesse momento, o terreno aos cômicos dell´arte. 
No início da tradição, os fragmentos cômicos tinham dois lugares oportunos e distintos para atuarem: nas festividades carnavalescas e na vida da corte. Eles se abordavam dois organismos primitivos bem vivos que no momento da comicidade carnavalesca havia caracteres grotescos bem diferentes comparados aos satíricos da comicidade cortesã. Portanto, tanto um como outro foram proeminentes como experimentação cênica, pesaram como tradições e estavam presentes nos elementos constitutivos da Commedia dell´Arte quando esta atinge sua maturidade e perfeição de artificio e de forma. Os espectadores, sabendo que havia coisas mal vistas e pouco toleradas (principalmente pela Igreja católica), participavam com muita animação e entusiasmo dos espetáculos dell´arte; os lazzi foram rudes e simples, a obscenidade aflorou, a brincadeira foi rigorosa, a injúria atroz, até mesmo os traços do rosto nas imagens santas foram deformadas e triunfou o grotesco presente nas características do Barroco. 
Apollonio (1982, p. 24) diz que a Commedia dell´Arte viu somente um aspecto da vida, compendiou ao extremo as relações práticas, reduziu sentimentos e paixões ao egoísmo mais desavisado e intolerante. Não viu homem e alma, mas funções e máscaras, e por herança distante ficou imersa imutável. Porém, percebe-se um aspecto prosaico a partir desse comentário de Apollonio que depois Jung vai sistematizar na sua teoria dos arquétipos. Jung (2008) diz que: 
"Arquétipo é, na realidade, uma tendência instintiva, tão marcada como o impulso das aves para fazer seu ninho e o das formigas para se organizarem em colônias. (...) Mas, ao mesmo tempo, esses instintos podem também manifestar-se como fantasias e revelar, muitas vezes, a sua presença apenas por meio de imagens simbólicas. São essas manifestações que chamo de arquétipos. A sua origem não é conhecida; e eles se repetem em qualquer época e em qualquer lugar do mundo (...)" (JUNG, 2008, p. 83). 
E é nessa relação arquetípica que se manifesta o Uomo Selvático e as personagens da Commedia dell´Arte, como por exemplo, o diabólico Arlecchino ou Zanni, o amoroso Orazio ou Isabella, os patrões Pantalone e o intelectual Dottore, o militar fanfarrão Capitano Spaventa etc. As personagens da Commedia dell´Arte têm em sua superficialidade um caráter universalista e arquetípico, isso explica o sucesso em três séculos em diferentes países do continente europeu, do Ocidente ao Oriente, como a Rússia. 
Por isso, quando Apollonio (1982) diz imutável percebe-se uma crítica em suas palavras, mas pode-se concluir que a Commedia dell´Arte em sua estrutura dramatúrgica e nas personagens pouco variou no sentido de adaptar-se aos tipos de cada região na Itália, na cultura teatral na França do reinado de Luiz XV, por exemplo, ou nos mimos e na Farsa Atelana. O caráter arquetípico relaciona-se com a construção do personagem mascarado na forma de agir e de pensar. A máscara é um elemento cênico que fixa um comportamento. Jung (2008) relaciona a máscara com o arquétipo: 
Com o passar dos tempos, a roupa ou a fantasia completa de animal foi substituída, em muitos lugares, por máscaras de animais e de demônios. Os homens primitivos empregavam toda a sua habilidade artística em tais máscaras e algumas delas têm uma força e uma intensidade de expressões insuperáveis. E são, muitas vezes, objeto da mesma veneração dedicada aos deuses ou ao demônio. Máscaras de animais também fazem parte a arte popular de muitos países modernos, como a Suíça42, e também dos antigos dramas japoneses No, ainda representados no Japão e onde são utilizadas máscaras admiravelmente expressivas. A função simbólica da máscara é a mesma do disfarce completo do animal original. A expressão do individuo humano desaparece, mas em seu lugar o portador da máscara adquire a digniade e a beleza (e também a expressão aterradora) de um demônio animal. Em termos psicológicos, a máscara transforma o seu portador em uma imagem arquetípica (JUNG, 2008, p. 317). 
Jung apoia através de sua teoria dos arquétipos, o fenômeno da Commedia dell´Arte, porque essa escola teatral, utilizando-se de máscaras, ou seja, arquétipos como Pulcinella, Arlecchino, Pantalone, cativou tanto os espectadores do sec. XVI e ainda suscita espetáculos e plateias atuais. 
Como exemplo, um cortejo de figuras mascaradas demoníacas que desfilam pelas ruas em Luzern na Suíça, uma festa popular que perdura aos dias atuais. 

2.2. Ruzzante - Angelo Beolco de Padova- “O pai – padre”. 

Angelo Beolco, circulou em ambiente requintado na cidade de Padova, região de Veneto, próximo a Veneza, Itália; teve contato com a corte de Ferrara e Veneza e ainda obteve título de nobreza na corte milanesa. Com o apoio de sua família por muito tempo, exerceu sua poesia e dramaturgia em dialeto padovano, já que era dotado de boa educação literária. Beolco, formado em ambiente citadino e aristocrático, presenciou uma crítica mordaz a respeito da vida rústica no campo pelos habitantes das cidades. Nesse caso, ressaltase que o campo e o camponês da Itália medieval do séc. XVI também provinham das montanhas; como disse Ferrone (2011) “Os homens de Ruzzante eram rústicos, camponeses, e como seus antigos progenitores, habitantes dos bosques, metade idiotas e metade selvagens, provenientes da paisagem agrária medieval, percurso pelos costumes pagãos”.

Angelo Beolco nasceu em Pádua- Itália, provavelmente em 1496 e morreu em 1542. Comediógrafo e ator. Filho ilegitimo de um médico teve educação refinada. Em sua juventude escreve rimas parecidas com Petrarca. Sua amizade com Alvise Cornaro (ver nota no.47) foi muito importante para o desenvolvimento de sua obra. In: http://www.treccani.it/enciclopedia/angelo-beolco-detto-ruzzante/. Acessado dia 20/01/2015. 44 “É estranho que naquele tempo tenham vindo ao mundo tantos filhos ilegítimos, que, em seguida, serão reconhecidos como homens sublimes e geniais... Entre eles, basta recordar Ruzzante, o maior homem de teatro que a Itália teve, filho de um médico de origem milanesa (docente e depois reitor da Universidade de Pádua) e de uma jovem camponesa padana que trabalhava como criada. A Ruzzante, superdotado no estudo das letras, não será jamais permitido o ingresso no Ateneu da cidade”. (Veneziano, 2002, p.27) 


Nessa perspectiva, Beolco criou uma trupe de diletantes para atuar, dirigir e encenar espetáculos nas cortes de Pádua, Ferrara e Veneza (incluindo a piazza San Marco), com seu principal personagem tipificado: um rude e estúpido camponês – il Ruzzante; que em português, podemos chamá-lo de grande bagunceiro ou mesmo aquele que berra, fala alto; isso revela sua característica bruta e tosca de vilão, no sentido de habitante das vilas, aquele que sai do campo ou montanha e vem instalar-se na cidade, mas sem a capacidade, a malícia ou o costume suficientemente treinados ao ambiente da cidade. 
Seus companheiros de cena eram: Castagnola, que fazia o tipo caipira bestial, tórpido e esquentado Bilora; Marco Aurelio Alvarotto era Menato e Gerolano Zanetti era Vezzo. Esta era a estável companhia teatral de Beolco, que tinha a garantia de realizar espetáculos com autonomia de criação e, de forma primordial, influencia os neonatos grupos de Commedia dell´Arte no início dos anos 1500. Um exemplo de espetáculo criado por Beolco foi numa festa na corte de Ferrara, comemorando o retorno do duque Ercole d´Este, em 1529. Isso exemplificava como atuavam os bufões do grupo em que Ruzzante acompanhado de cinco atores e duas atrizes cantavam e dançavam canções de madrigal ao estilo padovano, e andavam em torno da mesa do banquete segurando objetos característicos do campo, realizando um jogo mímico para alegrar os convidados. Essa era uma típica mascherata (dança do séc. XVI popular em Firenze, usando origens nas pantomimas gregas e romanas assim como performances feitas no carnaval. Em geral, uma reunião de pessoas mascaradas, um cortejo de máscaras, um grupo mais ou menos numeroso de pessoas travestidas com ou sem mascaras no rosto, com figurinos e como definiu Apollonio (1940), como um impulso para sair do mundo bem delineado da cultura cortesã e misturar-se por diversão a vida plebeia). Assim, o contraste entre o servo e o patrão, o nobre e o plebeu tinha lugar na deformação cômica de uma sociedade com padrões rígidos, impondo-se grandes distâncias entre aqueles, nas condições de inferioridade social aos mais abastados; os servos, naquele contexto, normalmente aqueles que vieram do campo e das montanhas, não conseguiam ascender na escala social. O velho é rígido, tanto em suas frases, quanto na sua vida: avaro, bruto e inflexível nas ideias e no corpo. O servo tinha uma espontaneidade pronta, irreflexiva, astuta e eficaz para uma gente primitiva - e sem escrúpulos, já que não possuía experiência suficiente no ambiente citadino. Apollonio observa que “A herança de Ruzzante agiu em extensão e profundidade; mas a tradição tinha necessidade de um ensinamento e de um estilo característico de diálogo cômico: que foram oferecidos pelos atores-saltimbancos que interpretavam as figuras do Magnífico e do Zanni” (APOLLONIO, 1940, p. 258)47. Ruzzante aparece nas comédias villanescas de Angelo Beolco e comumente, ele pode ser confundido como autor da comédia de argumento (soggetto) e da Commedia dell´Arte, mas sua comédia é popular, não ainda denominada Commedia dell´Arte. Assim sendo, a importância desse comediógrafo para formar a escola dell´arte adveio da introdução em suas comédias de diversos dialetos nas falas de suas 
adereços inspirados em um tema histórico, alegórico ou caricatural. Villanesca= villanella. Forma de poesia pseudopopular, de tema rústico sem um esquema métrico fixo, frequentemente musicada com estrutura muito simples, análoga da sátira e da cançoneta: surge por volta do fim do sec. XV em Nápoles (e por isso chamada também de villanesca à napolitana ou simplesmente napolitana), onde constitui, até o início do séc. XVII, a forma típica de canção popular. 
Personagens-tipo, sobretudo os dialetos padovano, toscano e veneziano. De acordo com Smith (1912): 
"Agora, era em Veneza que um ator deu o primeiro passo para ser independente e trabalhar com uma forma de arte própria, e de alguma forma profetiza a Commedia dell´arte, Angelo Beolco, um padovano associado com Zan Polo que nos arquivos venezianos, a partir de 1520, é certamente, um dos primeiros daqueles atoresprodutores-dramaturgos que foi responsável pela evolução das peças improvisadas" (SMITH, 1912, pp.52-53. Tradução nossa). 
Neste ponto, vale destacar que Winfried Smith assinala que Beolco e sua trupe foram os pioneiros na formação de um métier, de uma profissão, do ofício teatral. Isso significava que, naquele momento, tornava-se possível produzir espetáculos e ser capaz de sobreviver com eles e ainda, ter o poder criativo nas mãos em todas as etapas, do texto à encenação; já que segundo Ferrone (2011, p. 104), Alvise Cornaro era o mecenas de Ruzzante-Beolco. 
Também como destaca Andrews (2008, pp. 20-21), juntamente com Angelo Beolco, alguns autores da comédia erudita italiana influenciaram a criação do jogo das intrigas, dos tipos-fixos e das situações cômicas na Commedia dell´Arte, como Ludovico Ariosto, Pietro Aretino, Andrea Calmo, Girolamo Parabosco e Giambattista Della Porta; obras como “La Calandra”, de Bernardo Dovizi Bibbiena, “A Mandrágora” de Niccolo Machiavelli, e as comédias de Alessandro Piccolomini: “Amor constante” e “Alessandro”. Mas Beolco trouxe a liberdade de observar a humanidade viva em seu cotidiano e em suas relações sociais; essa é a conquista imediata de Ruzzante. Para ter tal liberdade de observação aconteceu uma mudança na disposição do seu público; a aristocracia veneziana observa a plebe agrícola com um olho diferente do modo habitual. O modo citadino versus o camponês já não é uma guerra e sim uma diversão. Porém, não existia quase nenhuma comédia em que essa “guerra” não estivesse presente, testemunhada ou mencionada nos diálogos, nas palavras, no caráter corpóreo dos personagens daquele mundo. Assim como explicou Proença (2011): 
“O ideal do humanismo foi, sem dúvida, o móvel de tais realizações e tornou-se o próprio espírito do Renascimento. Num sentido amplo, o ideal do humanismo pode ser entendido como a valorização do ser humano e da natureza em oposição ao divino e ao sobrenatural, conceitos que haviam impregnado a cultura da Idade Média. Tanto na arquitetura, como na pintura e na escultura, o artista do Renascimento buscou expressar a racionalidade e a dignidade do ser humano” (PROENÇA, 2011, p. 92). 
E Beolco, como um homem do Renascimento e com preocupação na forma exata da humanidade presente no seu mundo veneziano, olhava atentamente para o camponês e via toda deformação grotesca da realidade, em contraposição à imagem camponesa da burguesia e da aristocracia. Uma mitologia agreste que foi tema recorrente da Commedia dell´Arte. 

2.2.1. Obras de Beolco-Ruzzante

A primeira comédia de Beolco foi “Pastorale” e depois ele criou “Parlamento”, “Moschetta”, “Vaccaria”, “Fiorina”, “Piovanna” e “Anconitana”. Em “Pastorale” aparece sua intenção parodista. Uma contraposição entre os pastores literatos, que falam em língua culta e suspiram de amor, e os camponeses padovanos, desbocados e rudes, é semelhante a um comportamento de igual teor, em que Beolco insinua indiretamente a ideia da vaidade de uma Arcádia rústica e rude. A cenografia é dupla, tem um fundo campestre que surge de um lado com um templo e um altar de Pã e do outro, a casa do médico Bergamasco Francesco – e também dois prólogos: um em dialeto padovano e outro toscano. Apollonio (1940) nos apresenta um pouco de “Pastorale”: 
O amor pastoral de Milesio pela bela Siringa está destinado a acabar mal, pois Siringa, de nada ansiosa por amor, recusa as propostas do velho endinheirado e não se comove com a serenata de Linco. Só resta a Milesio se matar; e Mopso, que queria muito bem o velho, depois de uma canção desesperada, que repete o eco dos inúmeros lamentos melancólicos da poesia bucólica, cai desacordado. Arpino e Lacerto empenham-se a enterrá-lo, mas Lacerto tem que cuidar do seu rebanho e abandona bruscamente o companheiro; não resta outra opção a não ser chamar Ruzzante que tinha chegado ali para armar rede para pássaros. Com Ruzzante, se passa do mundo pastoral ao mundo rural: ele pede em recompensa as roupas e o casaco do falso morto, depois percebe que ele respira, se arrepende de deixar passar a ocasião de tirar um proveito, duvida da fidelidade da mulher e pede para tomar conta de seu pai que há três dias está inchado como um barril. Encenação da análise da urina, Mopso, esticado pelos braços e pelas pernas, volta a si. O pai de Ruzzante morre e, depois de um sacrifício ao deus Pan, tudo termina em um baile (APOLLONIO, 1940, p. 111. Tradução nossa). 
Pan ou o deus Pã, assim chamado, diz-se da palavra grega pã, que quer dizer tudo; era filho, segundo uns, de Júpiter e da ninfa Timbris; segundo outros, de Mercúrio e da ninfa Penélope. Dizem outras tradições que era filho de Júpiter e da ninfa Calisto, ou talvez do Ar e de uma Nereida, ou finalmente do Céu e da Terra. Todas essas diversas origens têm uma explicação, não só no grande número de deuses com esse nome, mas ainda nas múltiplas atribuições que a crença popular emprestava a essa divindade. O seu nome parecia indicar a extensão do poder, e a seita dos filósofos estóicos identificava Pã com o Universo, ou ao menos com a natureza inteligente, fecunda e criadora. Mas a opinião comum não se elevava a uma concepção tão geral e filosófica. Para os povos, o deus Pã tinha um caráter e uma missão sobretudo agrestes. Se nos mais remotos tempos, ele havia acompanhado os deuses do Egito, na sua expedição das Índias, se tinham inventado a ordem de batalha e a divisão das tropas em ala direita e em ala esquerda, o que os gregos e os latinos chamavam os cornos de um exército, se era mesmo por essa razão que o representavam com chifres, símbolo da sua força e da sua invenção, a imaginação popular, desde logo tendo restringido e limitado as suas funções, havia-o colocado nos campos, entre os pastores e os rebanhos. Era principalmente venerado na Arcádia, região das montanhas, onde proferia oráculos. Em sacrifício ofereciam-lhe mel e leite de cabra. Celebravam-se, em honra sua as Lupercais, festas que depois se espalharam na Itália, onde o árcade Evandro levou o culto de Pã. 
A montagem rústica e ampla servia para ironizar toda a vulgaridade insolente dos brutos, a obscenidade nas cenas, a realidade caricatural, o exagero grotesco onde Ruzzante negocia enterrar Mopso, supostamente morto, em troca de seu casaco. Assim como, surge somente no final da comédia, um culto ao deus Pã, no qual se ofertava leite de cabra e mel. Pã é um ícone do movimento arcadista e muito popular como deus pagão na Itália, simbolizando a proteção aos rebanhos e aos camponeses, concedendo-lhes fertilidade e prosperidade. 
Em outra comédia de A. Beolco, “Moschetta”, ele faz um esboço dos camponeses em um ambiente citadino e de personagens retratados comicamente num enredo em que cidade de Padova lhe servia de pano de fundo. Nessa comédia, Menato quer seduzir Betia, mulher de Ruzzante, mas também surge Tonino, um soldado bergamasco fanfarrão para cativá-la. E Apollonio (1940) exemplifica o caráter da camponesa Betia que: “na realidade, a sua não é a agilidade ou mutabilidade de uma mosca, da graciosa, que aceita as propostas do soldado Tonino, um fanfarrão bergamasco (...)”. Destacamos esse personagem-tipo de Beolco, Tonino, proveniente do Milles Gloriosus da comédia latina e vai antecipar o nascimento de Capitan Spaventa da Commedia dell´Arte. Outro tipo também apresentado por Beolco é Truffo, um Zanni que surge na comédia Vaccaria inspirada em Asinaria (Comédia do Asno) de Plauto. Aqui, mostra que o conhecimento literário e teatral de Beolco das comédias latinas de Plauto proporcionou a criação de seus tipos italianos medievais. Portanto, percebemos que a importância de focarmos a obra de Ruzzante está no pioneirismo da atribuição dos dialetos aos personagens-tipo, principalmente o padovano. Como destaca Nicoll (1963a, p. 258): a introdução da improvisação, bem como a livre mistura de dialetos parece indicar ligação entre essa commedia alla villanesca e a posterior comédia improvisada58. Nesse sentido, o comediógrafo Beolco-Ruzzante, coloca na boca do rústico camponês sua própria linguagem e exagera seu modus vivendi, retirando das praças medievais europeias e da festa carnavalesca, seu material artístico–teatral na concepção de sua obra. E com isso, as comédias e o espetáculo de Ruzzante foram inspiradores à nova forma de teatro: a Commedia dell´Arte. 


CAPÍTULO 3 - O QUE CARACTERIZOU A COMMEDIA DELL´ARTE NOS SÉCULOS XVI, XVII E XVIII. 

3.1. Análise histórica das características teatrais 

A princípio vamos fazer um prólogo, abordando o nome ou conceito Commedia dell´Arte já que esse termo, segundo Miklasevskij (1981), tem sua provável origem no séc. XVIII, pois anteriormente era chamada de Commedia all´improvviso, Commedia a soggetto, Commedia di Zanni, Commedia popular ou Commedia delle maschere, e na França de Comédie italienne. Assim “arte”, no italiano, tem o sentido não somente de obra de arte, mas também ofício, aptidão, profissão e corporação. Uma comédia feita por profissionais, que modernizaram o ofício do ator teatral, tornando-o uma ocupação com direitos e deveres. Mas, também podemos ter um conceito mais pragmático e comum às corporações de ofício medievais, como observou Benedetto Croce (apud TESSARI, 1981).
Não é próprio que a commedia dell´arte não seja essencialmente, conceito artístico ou estético, mas profissional ou industrial. O nome em si diz claramente: commedia dell´arte, ou seja, comédia tratada por gente de profissão ou de ofício, que tal é o senso da palavra arte no velho italiano (apud TESSARI, 1981, p. 48. Tradução nossa)60. 
Também chamada de comédia improvisada ou comédia a soggetto, pois tinha um traço incerto (improvisado) com relação ao roteiro, elencando rapidamente a trama com signos convencionais e com indicações genéricas, possibilitava aos atores tecer e adornar os diálogos, procurando preenchê-los com palavras e gestos mais eficazes para dar vida ao acontecimento teatral. Mas, de fato, pode-se observar que existe uma contradição no nome ou no conceito, como notou Apollonio (1982), uma vez que a Commedia dell´Arte era feita também por cômicos amadores, acadêmicos ou cortesãos, enquanto arte era uma palavra solene que significava seriedade de propósito, observação inteligente que não leva a uma proposta aleatória. Portanto, essa contradição sobre a palavra arte conduz a dois sentidos: uma observação inteligente e uma cena improvisada pelos cômicos dell´arte, ou seja, um valor estético atribuído ao conceito de uma arte realizada tanto por diletantes como por novos profissionais da cena, uma comédia que se apoderou de uma significativa dimensão expressiva, como ressaltou Tessari (1981).
Ora o caráter específico da Commedia dell´Arte consiste propriamente em evidenciar a forma glamourosa a possibilidade de fazer teatro sem restringir a dimensão cênica à mera exteriorização fônica e figurativa da palavra escrita. A via realizada pelos cômicos não é nem aquela de uma prática mercantil assimilável na atividade de qualquer comerciante, nem aquela de uma inquietação artística comparável à criatividade shakespeariana. Arlecchino não é Hamlet, mas também não é uma estatueta de cerâmica: é o símbolo de um jogador que empurra o teatro para longe do texto, em direção à busca de uma teatralidade que pode traduzir-se em dinheiro, mas na condição de conquistar novas dimensões expressivas (TESSARI, 1981, p. 50)
Isso permitiu uma apropriada prosperidade na trajetória da Commedia dell´Arte, que ora era criticada por ser pobre e vulgar, ora exaltada como livre, espontânea e naturalmente viva. Uma forma de teatro total, capaz de acolher e manifestar em espetáculo artístico- teatral uma vida dos acontecimentos cotidianos e ampliá-los de maneira grotesca e popular, sem perder de vista o gosto de quem estava na plateia. Mas o que foi a Commedia dell´Arte? Como defini-la ou classificá-la atualmente? O termo gênero foi empregado no Brasil de forma pouco cautelosa e bem concisa para explicar o fenômeno teatral da Commedia dell´Arte, pois como Pavis (1999) alerta: 
Fala-se correntemente de gênero dramático ou teatral, de gênero de comédia ou de tragédia, ou de gênero de comédia de costumes. Esse emprego pletórico do termo gênero faz com que se perca seu sentido preciso e prejudica as tentativas de classificação das formas literárias e teatrais (PAVIS, 1999, p. 181). 
Contudo, nas referências bibliográficas desta pesquisa, não encontramos tais menções ao termo e sim que a Commedia dell´Arte foi uma escola, uma academia que principiou o teatro moderno, formalizando a profissão do ator teatral. Desse modo, a academia dell´Arte, esse fenômeno teatral, tem seu marco histórico, sua certidão de nascimento abalizada num documento cartorial, como apontou Apollonio: “Nasce agora uma escola: mas de quanta liberdade precisava para nascer assim vigorosa para durar dois séculos e não morrer ao longo do terceiro!”(APOLLONIO, 1914, p. 70). De tal modo que esse documento comprova o advento da primeira companhia teatral de Commedia dell´Arte registrada em um cartório de Pádua do Sr. Vicenzo Fortuna, em 25 de fevereiro de 1545. Nesse documento registrou-se uma “fraternal companhia” elencada pelos senhores Ser Maffio de Padova, vulgo Zanini; Vicenzo de Veneza; Francesco de la Lira; Hieronimo da S. Luca; Zuandomenego, vulgo Rizo; Zuane de Trevixo; Thofano de Bastina, e Francesco Moschin. Os nomes como Zanini, Zuane e Rizo eram nomes artísticos ou alcunhas e tinham direta conexão com as personagens que esses atores representavam nas comédias. O contrato, firmado em Pádua, constituía um dos primeiros registros da existência de uma estável companhia teatral de cômicos dell´arte (estável por tempo e não por lugar). Aqui um trecho do documento para que possamos analisar o fenômeno da Commedia dell´Arte: 
Desejando os companheiros abaixo citados, ou seja, os senhores Maphio, chamado Zanini de Pádua, Vicentio de Veneza, Francesco de la Lira, Hieronimo da S. Luca, Zuandomenego, chamado Rizo, Zuane de Treviso, Thofano de Bastian e Francesco Moschian, fazer uma fraternal companhia – a qual deverá durar até o primeiro dia da futura quaresma do ano de 1546, e que deve começar na próxima oitava de Páscoa –, juntos, decidiram e deliberaram que tal companhia deverá durar em amor fraternal até o tempo indicado sem nenhum ódio, rancor ou dissolução; e, entre eles, seguir e respeitar com toda ternura, como é costume de bons e fiéis companheiros, todos os capítulos abaixo, os quais prometem aplicar e respeitar sem nenhuma hesitação, sob pena e perda de dinheiro subscrito. E, primeiramente, em comum acordo, elegeram seu líder para interpretar suas comédias, de lugar em lugar, por onde estiverem, o prendado senhor Maphio, e ao qual todos os companheiros mencionados anteriormente – no que toca à ordem de interpretar as citadas comédias – devem servir e obedecer em tudo aquilo que ele determinar e, portanto, ir enveredando pela terra como ele determinará. (APOLLONIO, 1982, p. 92)
O repertório não foi citado no documento, mas segundo Apollonio (1940), podemos deduzir que seguiam a tradição de Ruzzante – morto três anos antes - e faziam vários tipos de comédia: commedia alla vilanesa, comédia erudita e comédia bufonesca. 
O início dos trabalhos deu-se perto da Páscoa, pois no continente europeu, nesse período do ano, tem início a primavera; o inverno já havia passado e, além disso, fariam uma pausa com direito a férias de junho a agosto, retornando aos trabalhos em setembro (ver anexo A). Portanto, os direitos e deveres de cada participante da “fraternal companhia” explicitados no contrato, proporcionou uma apropriada organização teatral, com regras bem marcantes para um bom convívio e uma subsistência financeira justa, já que havia punição para quem abandonasse o grupo ou mesmo garantia de auxílio em caso de doença. Isso nos leva a refletir que, com uma crise financeira assolando a Europa naquela época, os cômicos dell´arte criaram uma forma nova de arte, uma saída da crise e ainda abriram um novo mercado no mundo das artes cênicas como forma de sobrevivência. 
Senhor Maphio e os seus colegas são, sem sombra de dúvida, o símbolo de uma condição de crise econômica e social que inventa engenhosa e excentricamente a sua própria solução: a abertura de um novo artesanato, a perspectiva de vender uma comédia transformada em espetáculo de grande consumo”. (TESSARI, 1981, p. 46. Tradução nossa). fidel compagni, tutti li capitoli infrascripti, quali promettono di atender et observar senza alcuna cavilatione, sotto la pena et perdita di denari infrascripti. Et primo hanno così d´acordo elletto in suo capo nel recitar de le sue comedie di loco in loco dove si troveranno il predito Ser Maphio, a el qual tutti li compagni preditti, quanto aspetta a ordine de il recitar ditte commedie , li debba prestar et dar obedientia di far tutto queloo lui comanderà con ciò et andar invedando per la terra come lui comanderà”. (APOLLONIO, 1914, p. 92) 
O título de Ser Maffio lhe conferia autoridade em relação aos outros e o curioso é que ele era um notário bem-sucedido e de boa formação cultural e acadêmica. Mas, mesmo com essa condição estável, por que Ser Maffio deixara sua vida cômoda e próspera para entrar numa empreitada teatral junto a uma fraternal companhia de Commedia dell´Arte? Como bem observou Molinari (1999) “pode-se concluir que o teatro moderno nasceu sob o signo de uma paixão”. Uma paixão por produzir e fazer teatro. Mas Ser Maffio além de apaixonado, foi também um empreendedor teatral e o primeiro autor-ator de profissão, já que era o capocomico da companhia, ou seja, aquele que dirigia e gerenciava o grupo, além de representar sempre seu personagem fixo. Zanni Maffio, talvez devido à sua natureza muito passional, morre prematuramente em Roma (1553), quando entra numa contenda com o domador de cavalos chamado Giovanni Antonio Vardi, vulgo Bologna. Contudo, Zanni Maffio proporcionou às outras futuras companhias dell´arte e aos colegas de ofício, um adequado modelo de contrato e organização teatral. E em Roma, no ano de 1564, outra companhia aparece em registros oficiais, destacando-se o nome de Lucrezia Senensis de Siena, a primeira donna a ser notada como uma atriz profissional. A entrada em cena de mulheres em uma companhia teatral foi revolucionária, pois mexeu com um tabu: a figura feminina casta. Essa atitude sediciosa foi repelida pela religião cristã e um pouco pela aristocracia, já que os hábitos e os costumes do séc. XVI determinavam que as mulheres ficassem em casa como esposas ou que trabalhassem com afazeres domésticos - ou senão, nas ruas, como meretrizes. Mas, por razão econômica, já que a Europa estava em crise, a Commedia dell´Arte, como uma indústria de entretenimento, abriu a oportunidade para que as mulheres pudessem trabalhar como profissionais das artes cômicas, gerando uma transformação no âmbito social e cultural. Como anotou, espantado com a novidade, no ano de 1631, Pedro Hurtado de Mendonza (apud TESSARI, 1981).
Vivem promiscuamente homens e mulheres: os homens sãos uns jovens desenfreados, que pensam dia e noite nos amores e aprendem de cor poesias amorosas; as mulheres são (sempre ou quase sempre) despudoradas. A coabitação é livre, sem que as mulheres estejam sozinhas em quartos separados; por isso, os homens frequentemente as veem se vestirem, se despirem, se pentearem; ora na cama, ora meio nuas; e sempre a falar entre eles de coisas lascivas. Os maridos são covardes que as mulheres não respeitam e que os amantes não temem. As mulheres, muito frequentemente, são meretrizes, exercem o trabalho sob pagamento: e em cena frequentemente se encontram, e o homem tira a roupa da mulher e a veste, para que ela, sem perder tempo, possa assumir diferentes papéis na comédia (...). Para as mulheres soma-se um outro perigo nem um pouco leve: frequentemente são extraordinariamente belas, elegantes no comportamento e nas roupas, de bom papo, hábeis na dança e no canto, especialistas na arte da representação. E tudo isso arrasta os espectadores à sensualidade. (MENDONZA apud TESSARI, 1981, pp. 20-21) 
Esse quadro hiperbólico visto pela lente da moral cristã nos mostra o quão libertadora fora a presença feminina em cena como atriz profissional. Ela, ao mesmo tempo livre e emancipada, podia ter outra opção profissional, ainda que com o estigma da mais remota profissão feminina: a prostituição. A Igreja tolerava essa ocupação, pois aceitava de certa forma o adultério e o meretrício, mas mexer nos dogmas morais cristãos com relação ao papel da mulher foi um marco moderno que a Commedia dell´Arte fincou em solo europeu. A estratégia de marketing dos novos profissionais da comédia empregando atrizes possibilitou um sucesso estrondoso com um merchandising licencioso e sensual (hoje em dia, as propagandas de cerveja se servem dessa mesma estratégia de sucesso). A figura feminina foi essencial para o sucesso da Commedia dell´Arte, como observou Tessari (1981, p. 23). “Nua ou vestida, a mulher introduz nas comedias dell´Arte a atração de um objeto sensual que exaltava o próprio fascínio em contato com a trama elaborada pelos cômicos”. O elemento sexual popular e proibido como uma propaganda poderosa torna-se mais interessante e atraente para o espectador de todas as classes sociais, das praças e das salas teatrais, visto que as atrizes faziam os papéis das mulheres da trama, como servas e patroas, ao contrário do que era comum naquele período, quando os papéis femininos eram feitos por rapazes - como, por exemplo, Julieta, que foi representada por um adolescente, pois a Inglaterra seguia a tradição e os costumes da época elisabetana, em que se proibia mulheres em cena. Assim como o povo, a aristocracia italiana (e depois toda a Europa) também apreciava a Commedia dell´Arte, que foi sendo aceita. Assim, criou-se uma tradição, apesar das condenações da Igreja católica, como Tessari (1981) elucidou o modo de reprovação que sofreram os cômicos dell´arte. 
Os cômicos – segundo Carlo Borromeo – são danosos ao povo em muitos modos, porque levam para fora das cidades muito dinheiro, e dão oportunidade a jovens e garotos de roubarem seus pais para pagarem pela comédia, e fogem da escola e da oficina, e introduzem por tudo os maus costumes. [...] Todas as reuniões de pessoas indiferentes, quando continuam, são perigosas pelos conluios que causam, principalmente nesses tempos suspeitos de heresia. (TESSARI, 1981, p. 23) 
A insurreição da Commedia dell´Arte, do mesmo modo, estava presente no happy end e no amor livre dos jovens enamorados, pois naquela época, os casamentos na aristocracia eram arranjados por interesses dos pais. Já que o homem da Idade. Média, como observou Miklasevskij (1981), reagia ao idealismo e ceticismo cristão, imposto pela toda-poderosa Igreja católica criando, em vez disso, uma forma de espetáculo alegre, vital e incontrolável, desviando da ideia da morte, da qual o clero se valia para aterrorizar o povo. O homem medieval não era ainda maduro a ponto de poder enfrentar a Igreja, mas procurava sua maneira de viver, expressando-se de forma visceral. Esse aspecto favorecia a arte dos histriões, que tinham a intenção voltada ao divertimento, ausente de qualquer ideologia. De tal modo a Contrarreforma infligiu sua censura às manifestações teatrais que colocava um padre censor em cada província italiana para ler previamente o texto a ser encenado; nesse caso, a improvisação, como característica marcante da recente Commedia dell´Arte, foi um extraordinário instrumento para burlar e possibilitar uma liberdade ímpar de produção artística. Duas hipóteses levaram dois tipos distintos de apaixonados pelo teatro cômico popular à criação da Commedia dell Arte: os histriões72 e os diletantes acadêmicos73, segundo Miklasevskij (1981, pp. 26-27).
É possível formular duas hipóteses: ou os próprios histriões, ao virarem moda e farejarem um pouco de cultura, assimilaram tudo aquilo que parecia útil para enriquecer seu oficio, ou então, alguns diletantes acadêmicos, entusiastas do estilo popular, começaram a imitar os histriões e, os mais dotados deles, ao se tornarem profissionais, direcionaram a sua arte para um novo trilho. Na minha opinião, os diletantes devem ter dado uma certa contribuição: no ambiente dos histriões profissionais provavelmente vigorava um princípio corporativo profundamente adverso a qualquer inovação, e uma reforma desse tipo não poderia ser realizada gradualmente e num plano coletivo”. (MIKLASEVSKIJ, 1981, pp. 26-27. )
Da mesma forma que Ser Maffio criou sua companhia de Commedia dell´Arte por paixão, muitas outras apareceram no séc. XVI, como os Gelosi, os Confidenti etc, já que o espetáculo dell´arte não era feito por um único ator e sim coletivamente. Como observou Miklasevskij (1981, p. 1) “Os elementos essenciais que servem para definir a Commedia dell´Arte são a criação coletiva dos atores, que elaboravam em conjunto o texto do espetáculo e a ausência de um simples autor da peça”. Assim, a tradição da Commedia dell´Arte se estabelece na Itália, principalmente no Norte, nas cidades de Florença, Veneza e Mantova. Como disse Apollonio (1982).
Se existia uma organização tradicional da fábula, existia ainda mais uma tradição dos personagens: porque o interesse dos espectadores é mais voltado às cenas ridículas individuais do que ao conjunto, e nos comediógrafos menores - os intérpretes, os imitadores, os artesãos – todo o esforço compositivo se empenhava sobre os fragmentos, tingindo os diálogos de cores vistosas, enquanto a ação continuava a fluir por conta própria, entre duas margens retas e bem represadas; aliás, se acentuara de imediato o equilíbrio entre o mecanismo cinemático do diálogo e a estagnação da ação. (APOLLONIO, 1982, p. 65)
Mas o que entenderemos por tradição e escola? O que significou para o teatro a escola da Commedia dell´Arte? Essas questões serão respondidas no final desse trabalho. Por ora, vamos nos ater sobre o conceito de Pareyson (1993) sobre a tradição e escola.
É dado que a escola e a tradição constituem mundos humanos, aderir a eles significa interpretá-los operosamente, ou seja, conservar-lhes fielmente a natureza precisamente no seio da própria atividade, e ter acesso a eles significa começar a fazer parte de um mundo de pessoas igualmente conscientes de sua respectiva singularidade e de sua recíproca semelhança. A organicidade de uma escola ou de uma tradição é ao mesmo tempo motivo e o resultado de uma adesão livre, e isso atesta mais uma vez que a escola e a tradição só vivem nas consciências e nas obras que a elas aderem, o que não significa que se reduzam a elas, ao contrário, atuam dentro delas, e só assim podem reivindicar abrangê-las novamente dentro de si. ” (PAREYSON, 1993, p. 16) 
Ora, se em pleno séc. XXI estudamos e buscamos a Commedia dell´Arte não é somente como uma escola de interpretação teatral, mas como um modelo do fazer teatral, exaltados por Meyerhold, Dullin, Jouvet, Lecqoc etc. Por esse motivo, abordamos, neste trabalho, como essa tradição dell´arte se caracterizou como uma “macchina” e indústria de fazer teatro, cujo ator era o centro da cena. Desse modo, os elementos essenciais da Commedia dell´Arte foram apontados por Tessari (1981) como sendo: 
1. o arranjo mercantil do espetáculo e uma preocupação extensa com o público; 2. a presença feminina em cena; 3. a recuperação da máscara enquanto signo teatral; 4. o repúdio à submissão ao texto literário; 5. a exaltação da gestualidade; 6. a codificação de claros tipos cômicos; 7. a escolha de tramas elementares, cativantes e libidinosas; 8. e a procura de uma expressividade “natural” enquanto representavam. 
A tradição dos cômicos dell´arte se estabeleceu nas praças medievais, nos castelos e nos teatros. O carnaval não foi o mesmo depois de 1545, como lembrou Molinari (1999), quando surge a Commedia dell´Arte, pois ninguém antes se fantasiava de Arlecchino, Pulcinella, Pantalone - e também as jovens mais tardiamente de Colombina. E, a convite do doge de Veneza, um francês chamado Jacques Callot retratou o cotidiano e das festas nos ducados e repúblicas-estado na Itália, e em particular ao nosso tema, destacamos Balli di Sfessania78, em cuja festa popular havia várias personagens-tipo da Commedia dell´Arte improvisando suas cenas na rua. Como disse Miklasevskij (1981).
Basta observar, para se convencer disso plenamente, os cenários de Flaminio Scala ou as primeiras coletâneas de monólogos ou diálogos aos quais os atores recorriam nas ocasiões oportunas, ou ainda os desenhos de tipos teatrais de Callot. (MIKLASEVSKIJ, 1981, p. 32)
No ano de 2013, quando de nossa pesquisa de campo nas ruas e vielas de Veneza, observamos a forte influência dos personagens-tipo da Commedia dell´Arte nas lojas, praças e, de modo geral, em todo carnaval veneziano. Jacques Callot: Danças de Rua. Jacques Callot (Nancy, 1592-1635), desenhista e gravador francês, é um dos expoentes da arte grotesca. Na sua obra, destacam-se as seguintes séries: Les Caprices (1617), Les Balli (16201622); Les Gobbi (os corcundas; 1620-1622); Les Gueux (os mendigos; 1622); e Les Grandes Misères de Guerre (1633). Acrescente-se a essas a gravura Les Tentations de Saint-Antoine, de 1634. Duas dessas séries (Caprichos e As Grandes Misérias da Guerra) antecipam em mais de 150 anos as séries homônimas de Francisco Goya: Los Caprichos (1799) e Los Desastres de la Guerra (1810-1820). Comecemos, festivamente, com uma galeria dos Balli di Sfessania. Essas 24 gravuras lembram a Commedia dell Arte (grifo nosso). Contemplam, aliás, algumas das suas figuras mais famosas. Na realidade, retratam artistas de rua envolvidos numa “sfessania”, dança napolitana marcada pela exuberância corporal, pela violência grotesca e pela obscenidade gestual e simbólica, sempre em ambiente de praça pública, com as pessoas a entregar-se à música, à dança, ao jogo, à luta e ao namoro. 
Na imagem acima, podemos observar o servo Pulcinella e a Sra. Lucrécia80; ao fundo da cena, vários outras personagens-tipo como Capitão, à esquerda, e ao centro uma cena típica de bastonata de um patrão e um servo. 
Aqui uma provável referência a Lucrezia Senensis de Siena, primeira atriz documentada. 
O que observamos nessa coleção de acquaforte de Jacques Callot é que ele, retratando uma festa popular nas ruas napolitanas, acabou registrando os tipos da Commedia dell´Arte. Como observou Ferrone (2011): “A história do espetáculo é, nesse caso, um estudo que vive de imagens”. Portanto, o estudo dessa iconografia nos revela posições corpóreas e situações de cena que corroboram as relações entre as personagens-tipo. E o conceito de Goldoni, criado no seu texto metateatro “Il teatro comico” (1971), que diz no plural “commedie dell´arte”, referindo-se às quatro máscaras tradicionais: Pantalone, Dottore, Truffaldino (ou Arlecchino) e Brighella, nos conduz ao princípio da escola dell´arte em que Pantalone e Zanni eram tradicionais no ambiente veneziano, um dueto cômico entre o patrão e o servo se estabelece; o patrão era o Magnífico82, título que desejava os cidadãos - principalmente os mercadores, que queriam a dignidade da nobreza -; assim Pantalone, que era um nome venezianíssimo, associa-se a Pantaleone, um som satírico que alude à bandeira de Veneza com um leão. O servo, empregado bergamasco, bresciano, valtenesi83, devido ao fato de os carregadores de carga terem aparência mais escura, por causa do carvão, as máscaras mais antigas de Arlecchino, inclusive aquelas que estão no Museo Buccardo (Roma), tem essa aparência escura. E os servos – Zanni- têm nomes diminutivos, com temas de uso vulgar, sons grotescos e redutivos de nomes do cristianismo, como José ou João – “Zan” -, e relacionados à cozinha, onde sempre surgem afamados: Zan Salsiccia, Zan Farina, Zan Pignatta. 
Assim como Florença era o centro de cultura renascentista italiana e muito ativa em nutrir de inteligencia e de reflexao literário aquele mundo, a cidade de Veneza foi, no séc. XVI, o ponto de convergência dos virtuoses de todo o mundo que ali se adunavam para renovar os estoques culturais e teatrais e também anunciar as novidades. Veneza é ainda hoje, por si só, o cenário de uma vida quase teatral - e naquela época sua gente usava máscaras por muitos meses do ano, mesmo fora do carnaval, numa 
espetacular encenação cotidiana entre a praça e os palácios. Assim, fatores contribuíram para o nascimento da Commedia dell´Arte: a universidade, a corte e a praça. Entretanto, em Veneza, não havia universidade, mas ali próximo, em Pádova, sim - o que lhe proporcionou o melhor da cultura humanística. Os jovens aristocratas, com vontade de reviver os temas greco-romanos, cultivavam a elegância espiritual que não ficava na superfície nem contrastava com outras tradições; enquanto os contemporâneos da nobreza feudal ou da burguesia mercantil estavam propensos aos devaneios dogmáticos ou aos subterfúgios românticos. Enfim, a praça de Veneza, com seu cotidiano necessário ao desenvolvimento mercantil e sua tradição bufonesca, detinha o lugar da representação cômica e mímica com as conjurações dos charlatões nas vielas e com a inevitável deformação grotesca da vida polular. O congraçamento do povo nos mercados de rua, vindos de todas partes do entorno de Veneza, e também das províncias vizinhas, era um espetáculo essencial no dia a dia; e somente desse modo se reunia tanta variedade de personagens da vida cotidiana, assim como se introduzia ao maravilhoso gosto das burlas, tornando a vida plebeia uma contínua comédia. Como descreve Garzoni (apud APOLLONIO, 1940) sobre a realidade da praça medieval de todos os dias: 
Congregam-se pescadores de ilhas do estuário, camponeses de terra firme, burgueses das cidades submissas; mas também orientais, turcos e alemães; o Magnífico tem seu endereço e o servente bergamasco espera quem o alugue; e, se a observação da praça se tornar uma obra de arte somente mais tarde; e para os comediógrafos experientes em ambientes, porventura, mais tranquilos e mais provinciais, a matéria em Venezia é rica e variada, e o povo da praça se agita todos os dias com um tumulto infinito”85. (GARZONI apud APOLLONIO, 1940) 
No quadro (figura 26) de Gabriel Bella (1730-1799), vemos, numa “Terça Gorda” de Carnaval na praça São Marco (Veneza), um cortejo fúnebre-satírico, e percebemos a existência de alguns tipos da Commedia dell´Arte, como Pulcinella (canto direito da figura) entre outros, e assim entendemos que tipos dell´arte participavam e construíam diariamente uma cultura da comicidade na Idade Média e no Renascimento veneziano. E, num ambiente assim, desimpedido e favorável, propenso às experiências mais variadas, a arte do espetáculo dell´arte se molda de experiências, reunindo-se todos em festividades populares nas praças ou nos casarões, onde se harmonizavam o esplendor, a beleza e a graça. 
Isso era possível porque a vida privada era estanque, sem graça e os venezianos amavam a festa e os prazeres do convívio social; nessa perspectiva, influenciada pela carnavalização, toleravam ver-se pelo espelho jocoso dos cômicos, como explicou Miklasevskij: “A arte do Renascimento italiano é um produto de dois elementos bem distintos: a imitação erudita da cultura antiga e a criatividade espontânea, o gênio popular”86 (MIKLASEVSKIJ, 1981, p. 26) 
O tema essencial era a sátira sobre os servos (Zanni), personagem que se relacionava com o cotidiano da cidade, vivendo em condição de inferioridade e sem dignidade. Usando essa fórmula simples de comicidade e exercendo um senso de justiça social e crítica, a Commedia dell´Arte encontra sua mola propulsora para alavancar a trajetória de sucesso. 
O nome Zane - ou Zan (no plural Zanni) - é o diminutivo satírico de um nome cristão muito comum na época, Giovan ou Giovanni. Faz contraste com o cidadão da tradicional família veneziana, membro da aristocracia dominante, avaro, que exerce o papel do patrão; aqui um contraste pleno de classes, de mentalidades e regiões: enquanto Zan é bergamasco, estrangeiro dentro da cidade-estado de Veneza, Magnífico é nativo e aristocrata local. E não somente em Veneza aparece esse dueto, mas já em Florença, na metade do séc. XI, foi descrita uma típica mascarada de Zane e Magnífico citada por Apollonio (1982, p. 74)
Fazendo o Bergamasco e o Veneziano Vamos a todas as partes E recitar comédias é a nossa arte. 
Cantava o canto carnavalesco de Lasca, e com estes outros versos: 
Enfim, desejamos uma boa e bela Perspectiva de novo para fazer ver, lá onde Cantinella e Zanni vos darão diversão e prazer... .................... Por cortesia, escutem um pouco que tagarelagem fazem juntos aqueles valentes Zanni Vejam fora das vestes cai punhais, estoques e fazer certos gestos de matar de rir sensatos e loucos.
A máscara teatral foi resgatada pela Commedia dell´Arte como um signo teatral mais moderno que as duas máscaras clássicas da Tragédia e da Comédia, mas segundo Tessari: “a máscara moderna tem a mesma face dividida em dois hemisférios: a coroa e a nudez” (TESSARI, 1981, p. 30. Tradução nossa), referindo-se possivelmente, aos enamorados, ao amor romântico, “sagrado”, acima do baixo ventre e a nudez com a presença feminina da serva, do profano, do baixo ventre. As categorias das personagens-tipo da Commedia dell´Arte provêm de observações sociais cotidianas, ou são herdados dos tipos de Plauto, das fábulas atelanae e dos mimus romanus. Dessa forma, os papéis representados pelos atores dell´arte - ou, conforme o vocabulário da Commedia dell´Arte, as partes - classificam-se em quatro tipologias fundamentais: as partes dos Enamorados, dos Velhos, dos Capitães e dos Servos ou Zanni. Como observou Tessari (1981, p. 81): “Enamorados, Velhos, Capitães e Zanni constituíam os componentes inextinguíveis da máquina espetacular que os cômicos deveriam colocar em cena”.       
3.2. As personagens-tipo das duas partes 

O que havia de essencial num roteiro ideal (scenario ou canovaccio) da Commedia dell´Arte: dois velhos (Pantalone e Dottore), dois Zanni, os mais comuns eram Brighella e Arlecchino, um Capitão, dois pares de Enamorados (dois homens e duas mulheres) e uma serva ou Fantesca. Mas poderiam aparecer três velhos ou somente um ou mesmo nenhum, segundo Nicoll (1963b). Nos Zanni, Brighella e Arlecchino eram os mais corriqueiros, mas poderia haver um somente ou até quatro Zanni, como Tartaglia, Scapino, Stupino, Trivelino, Mescolino, Scatolino, Colafronio, Pulcinella, Burattino, entre outros. Em alguns roteiros não havia Capitão (Capitano) e também este poderia fazer a parte do Enamorado. As fantescas podem aparecer em duas também, como Argentina, Rosetta, Colombina e Pasquella - essa última, uma personagem-tipo dona de pousada e velha - diferente dos outros Zanni, é uma figura familiar, que aparece, por exemplo, em “I duoi Fratelli” (coleção Correr-Veneza). 
E assim, entre essa variada tipologia da Commedia dell´Arte, podemos dividir em dois grandes grupos de personagens: aqueles que são sérios (ou menos engraçados) e os cômicos. Dentre os primeiros, temos os Enamorados e a Fantesca (serva), aqueles que não usavam máscaras por causa de sua beleza e sensualidade. Como observou Petraccone (apud NICOLL, 1963a, p. 233) que quem usava máscaras eram somente os bufões e os cômicos.

3.2.1. A parte “séria” 

3.2.1.1. Os Enamorados ou i Innamorati 

Os Enamorados, innamorati ou amorosos correspondem à parte “séria” e por onde se desenrola a linha da trama (o scenari ou canovaccio). Não obstante, faço um aparte destacando que coloco “séria” entre aspas, pois numa comédia fica difícil algo hiperbólico, exagerado - como são os Amorosos, Enamorados - não se tornar engraçado e caricato, mas com esse termo me refiro somente ao seu comportamento, dono de um amor extasiado e atitudes arrebatadas - e não aos outros elementos cênicos, como: figurino, máscara, postura física etc, como os Zanni, por exemplo. Os Enamorados, como observou Tessari: “devem ser escolhidos jovens e não velhos, sendo frequente junto aos cômicos o dito ‘Zanni velhos e apaixonados jovens’ porque a velhice contradiz o Amor, e quem está apaixonado na velhice é digno de riso e de escárnio” (TESSARI, 1981, p. 80). Dessa forma, os Enamorados eram jovens educados, vindos de família nobre, que ficaram desprovidos e perderam a boa condição social. Dessa forma, a Commedia dell´Arte também abriu um mercado de trabalho para os jovens aristocratas falidos, de maneira que o novo teatro cômico se enriquece de conhecimento humanístico, literário e cultural. As personagens-tipo dos Enamorados diziam frases de autores clássicos, citando-os de forma a florear o amor romântico em contraposição ao amor arranjado pela aristocracia medieval. O amoroso, tanto o primeiro quanto o segundo innamorato, deve ter, segundo Nicoll (1963a), aparência de um jovem com maneirismos cortesãos: ser galante dentro e fora do palco, agradável, elegante ao vestir e perfumado. Os Enamorados podiam ser chamados de Orazio, Polidoro, Flavio, Ottavio, Mario, Leandro, Lélio, Federigo, Fulvio, Virginio, Valerio, Celio, Adriano, Fortunio, Silvio, Fabio, Curzio, Florindo, Cinthio del Sole. Segundo Duchartre (1966), todos revelam um traço de tolice, por causa da maneira como se comportam em consequência da flechada do cupido, da embriaguez do amor e da paixão. O jovem ator deve ter seu próprio zibaldone, seu caderno de anotações em que coloca as falas do palco com títulos como: Amor comum, Amor rejeitado, Lamentos etc. O enamorado, segundo Nicoll (1963a), deve preparar solilóquios para improvisar as falas durante o espetáculo dell´arte e, sempre ter a “bíblia” dos amorosos do séc. XVII em mãos: as obras de Petrarca. Dessa forma, muitos atores que faziam os Enamorados se tornaram escritores e poetas, como por exemplo, Domenico Bruni, que escreveu suas memórias em Prologhi (Turim, 1621) e Fatiche comice (Paris, 1623). Também no séc. XVII, o ator dell´arte G. B. Andreini, que nasceu em 1576 e estreou como ator aos 24 anos, após ter estudado direito em Bolonha; começou na Companhia dos Gelosi e depois foi ser capocomico na cia. dos Fedeli (1604) até sua morte; sua preferência pelo Innamorato Lelio pode ter sido influência do seu pai Francesco Andreini, que também fez o Enamorado antes de ficar famoso como Capitano Spavento. Giovan Battista Andreini publicou vários poemas e dramas, como por exemplo: La Maddalena (Florença, 1612); Il Teatro Celeste (Paris, 1623), La Teda Vergine e Martine (Veneza, 1623); assim como roteiros (canovacci) de Commedia dell´Arte, dos quais o mais relevante foi Le due comedie in comedia (Veneza, 1623), uma comédia dentro da comédia (metateatro) em cinco atos. 
Francesco Andreini, capocomico da Companhia dei Gelosi, teve uma experiência interessante para compor seu Capitano Spavento, pois ficou preso oito anos pelos turcos quando era militar; esse pensamento se completa na medida em que sua composição corpórea e raciocínio do papel poderia ter sido mais rica e, assim, prova seu sucesso junto ao público da época. Na companhia dei Gelosi entrou como ator com menos de 30 anos e, em 1578, casouse com seu grande amor Isabella Canali. Nessa mesma companhia foi capocomico, diretor que adotou um regime de assembleia e participativo. Ele ajudou a cia. dei Fedeli, dirigida pelo filho Giovan Battista Andreini, escrevendo “due Leli simili” e também publicou sua obra “Bravure del Capitan Spavento”. Como foi dito sobre G. B. Andreini (filho de Isabella e Francesco Andreini), que estudou Direito e foi o diretor de cena de sua companhia i Fedeli, assim como o grande Flaminio Scala, que também representava o Enamorado Flavio, concluímos que, para fazer a parte do Enamorado, o ator também deveria ser um homem inteligente, culto, capaz de decorar poemas e frases românticas e ser muito criativo, pois, sendo o mais experiente da companhia, dirigia-a como capocomico. Isso foi ilustrado na personagem do nobre falido, mas culto, que lia o texto para seus colegas e que aparece no filme A viagem do Capitão Tornado de E. Scola. Agora veremos um exemplo de diálogo entre os amorosos, em que ela implora e ele desdenha.

Mulher: - Não fuja, ídolo meu. 
Homem: - E o que pretende, minha fúria? Mulher: - Gostaria de te acender. Homem: - E com qual fogo? Mulher: - Com a paz do Cupido. Homem: - Podes submergi-la no Lete93. Mulher: - Não se pode, porque é de Etra. 
(PERRUCCI, 1669, p. 1229)

Nesse exemplo, encontramos referências clássicas às divindades greco-romanas. Também, os amorosos precisavam montar seus solilóquios de saída de cena, chamados “prime uscite” (primeira saída). Esses solilóquios ou eram sobre amor retribuído, ou amor mal correspondido, ou amor tácito, ou amor ciumento, ou amor desesperado ou outra paixão. A seguir, um quadro relacionando os atores e seus Enamorados famosos na Commedia dell´Arte:

Tabela 1
Já as innamorata, amorosas, enamoradas que apareciam nos scenarii segundo Nicoll (1963b), como filhas dos velhos; mas em alguns de Flaminio Scala, surgem como heroínas e casadas com Pantalone, Dottore Graziano ou Coviello; e também em outros, as enamoradas são alegres viúvas ou jovens órfãs. A sua preparação é a mesma dos Enamorados, mesmo repertório, mas difere no gênero e também em seu maneirismo mais contido. Os nomes mais comuns são Isabella, Flaminia, Silvia, Lidia, Ardelia, Flavia, Doralice, Licinda, Clelia, Rosaura, Violante, Cinzia, Florinda, Eularia, Ortensia, Clarice, Antelica, Felice, Adriana, Colasia, Celia, Diana, Valeria, Olivetta, Fulvia, Rosalba, Laura. E a mais famosa, que deu seu nome a personagem-tipo Isabella, nascida Isabella Canali, em Pádua (1562), filha do veneziano Paolo Cavali, com 16 anos já estava na Companhia dei Gelosi e, casada com seu capocomico Francesco Andreini, teve sete filhos; Giovan Batista Andreini, um dos seus filhos, foi adotado pela duquesa da Toscana, e outro pela duquesa de Mântua, mostrando como ela era bem aceita nas cortes na Itália e na França. Ficou famosa por seu talento e beleza, assim como por não possuir nenhum escândalo em sua vida. Em 1604, com sua morte em Lyon, aos 42 anos, a Cia. i Gelosi se desfez. Todos na cidade homenagearam-na num cortejo fúnebre. Seu marido, Francesco Andreini, foi um das personagens mais importantes e que melhor contribuiu desde o fim de 1500 e início de 1600, segundo Apollonio (1940), definindo a legendária imagem da Commedia dell´Arte e criando aquela mitologia sobre a figura ator que a partir do advento da profissionalização teatral fez parte da história do teatro europeu. Assim, Isabella Andreini foi um ícone como artista cênica e poetisa. Ela foi o carro chefe, o destaque dos Gelosi, pois em a Pazzia d’Isabella (A loucura de Isabella), a atriz sabia fazer de seu modo, repetindo temas celebres "loci communes" de poesia como de Aminta (Torquato Tasso), em que a loucura não mais é vigiada, como em Ariosto, mas uma superior visão da amorosa harmonia. Mulher cortesã honesta – dona de grande cultura, refinada e hábil no canto (comparada a uma geisha japonesa). Depois de algumas gerações, foram poucas as atrizes como Vicenza Armani ou Isabella Andreini, no topo de uma companhia ou até em posição relevante como Isabella Andreini, poetisa e membro da Academia del Intenti de Padova. No papel de Enamorada, Isabella Andreini deixou um legado de erudição, de reflexão literária, representou uma revolução do costume da técnica cênica e para o repertório das partes dos Enamorados. Não mais um rapaz travestido de mulher que existia no teatro dos diletantes que noutros tempos representavam as partes femininas, que induzia os autores a escaparem da literatura, pois não havia como alcançar um voo da poesia 
como aconteceu na Commedia dell´Arte. Uma bela descrição de Isabella por Tomaso Garzoni: 
A graciosa Isabella, enfeite das cenas, ornamento dos teatros, espetáculo soberbo tanto de virtude quanto de beleza, foi ela quem ilustrou esta profissão, de modo que, enquanto o mundo durará, enquanto passarem os séculos... toda voz, toda língua, todo clamor fará ressoar o célebre nome de Isabella (NICOLL, 1963a, p. 237. Tradução nossa). Ela também foi idolatrada em Paris (1604) no poema de du Ryer: A Isabelle Comédienne: 
Eu não acredito que Isabelle Pode ser uma mulher mortal; Ela deve ser uma deusa Que assumiu uma aparência feminina Para encantar nossas almas Através de nossos olhos e ouvidos. (DUCHATRE, ebook, posição 4886)

3.2.1.2- Fantesca (Sobrette ou Servetta)

Tabela 2

As servettas ou fantescas eram criadas que serviam suas patroas Innamorata, representando a parte séria e sem máscaras da Commedia dell´Arte, de forma a realçar a beleza e a sensualidade feminina. Os nomes mais comuns das servettas no séc. XVI são Francescchina, Licetta, Tiffia, Gitta, Berra, Gneva e Nina. Encontramos Franchesccina em Recueil Fossard uma coleção de xilogravuras de 1577. Elas têm como caractere tipológico serem simplórias e muito indulgentes, podem ser amantes de Arlecchino. Elas também não têm pudor do próprio corpo. Já no sec.XVII aparecem os nomes de Colombina, Olivetta, Fiametta, Nespola, Spinetta e Diamantina. Uma célebre Colombina foi Catherine Biancolelli, filha do famoso Arlecchino Dominique Biancolelli, cuja avó também fez o papel de Colombina, e se destacou como um tipo preferido na França. Era constantemente amiga e companheira de Arlecchino e poderia ser amante dos servos desonestos e de Lelio. Seu traje era um vestido simples decotado e avental. Colombina também pode ser esposa de Arlechhino e se tornou Arlecchina, seu vestido cheio de remendos arlequinescos.

A Ruffiana e la guaiassa são fantescas que aparecem como fofoqueiras, mediadoras e conselheiras dos Enamorados ou do velho Pantalone. Já Guaiassa é um tipo napolitano de servetta, uma mulher mais velha, comum, tagarela, que fedia a alho, mas com um bom coração. Mas, também escarnecendo os velhos amantes: 
Os velhos sr mais velha, comum, tagarela, que fedia a alho, mas com um bom coração. Mas, também escarnecendo os velhos amantes:ira de , de modo que, enquanto o muantigo canhr mais velha, comdisparado o primeiro e o segundo tiro, se retira e se segura, ou quebra. (PERRUCCI, 2008, p. 160) 

3.2.2. PARTE CÔMICA
3.2.2.1. Il Capitano ou Capitan 

Considerado por Nicoll (1963a) como parte séria ou semisséria, a personagem-tipo do grotesco Capitão está relacionada a uma disputa histórica em que a Itália medieval foi derrotada pelos espanhóis, ficando sob seu domínio por algum tempo. Dessa forma, a sátira ao soldado mercenário espanhol, que transitava no cotidiano das cidades italianas, deu origem à figura satírica do espanhol Capitan Matamoros (não mascarado) ou o italiano Capitano Spavento dell Valle Inferna (mascarado); porém mais limitado do que Magnífico e Zanni, uma máscara sem definição exata, repetia, todavia, um tipo muito popular daquele soldado convencido, presunçoso, fanfarrão, medroso e covarde. Capitano é o nome genérico de uma parte na Commedia dell´Arte em que aparece também nomes mais individualizados; assim temos os Capitães pomposos e desajeitados como Capitano Mala Gamba, Cap. Bellavitta, e outros magricelas e desolados como Capitano Sgangherato e il Cocodrillo. Também, aparece o galante Capitano Cerimonia entre outros, como Tagliacantonni, Bello Sguardo, Coviello, Cucuba, Cucurucu, Maramao. 
Alguns dos Capitães apareciam com certas deformações corpóreas como os bufões. Esquálidos, sombrios, tristes na aparência, aparentando uma certa nudez e sensualidade na calça apertada, colada e justa no corpo, um gibão, um chapéu exagerado e uma espada decadente, que muitas vezes não poderia ser usada por estar enferrujada ou com teia de aranha cenográfica, proporcionando uma sátira aguda sobre a falsa bravura do soldado espanhol. A sensualidade sublinhada por Anna Sica (1999) manifesta-se na comicidade do corpo e dos gestos, assim como no uso das posições cômicas, como, por exemplo, podemos ver na gravura acima de J. Callot, onde Cap. Babeo volta sua espada como um ícone fálico para o traseiro de Cucuba. Se alguma vez existiu maior vitalidade nos Capitães de Callot em Balli di Sfessania não foi mais que uma simples documentação da comédia dell´improvviso e da vida carnavalesca napolitana, contrapondo com o grotesco a miséria da guerra. Contudo, para compreender o espírito dessa máscara, que somente com Scaramuccia e o advento dos cômicos napolitanos teve sua grande fama, ela retorna à literatura com Cirano di Bergerac, de Rostand, e com O barão de Munckhausen. Descendente do Miles Gloriosus, personagem título da comédia de Plautus, Capitan possui caráter parecido com o soldado fanfarrão, já que miles quer dizer soldado em latim, ou seja, quase a mesma ideia do Magnífico de Pantalone, em que a imagem do nome gera uma chacota. Pode fazer a parte do segundo ou o terceiro enamorado, servindo para ser ridicularizado pela amorosa e também pelos servos e fantescas. Ele é um tipo toscano, siciliano, napolitano ou espanhol. Cecchini foi um grande ator da Commedia dell´Arte que fez sucesso como Capitano criando gestos, falas, e coisas extravagantes para o sucesso do papel, mas um grande sucesso foi o Capitano Spavento de Andreini, que publicou em 1624 depois da morte de Isabella, fechando sua Companhia i Gelosi, Le Bravure del Capitano Spavento. As falas eram feitas em dialeto calabrês por Andreini e os diálogos entre Capitano e Trappola (Zanni), inspiradas no zibaldoni de Perrucci, A Bravura spagnuola. É publicada coincidentemente no mesmo ano em que é lançado Don Quixote de Cervantes. A relação de Capitano Spavento e seu servo, segundo Molinari (1999), são similares a de Sancho Panza e Quixote com seus devaneios. São quarenta raciocínios (ragionamenti) e presta homenagem póstuma, no prólogo da edição e em várias partes, à sua amada esposa Isabella Andreini, morta em 1604, e citada como enamorada Isabella (MOLINARI, 1999).
CAP. Se a Senhora Isabella, boa de nome, bela de corpo, e belíssima de alma, não se decidia em recompensar minha fé o meu amor, eu já tinha concluído e decidido, vencido pela árdua paixão, e por meu tormento amoroso, de ir-me como desesperado amante à guerra contra o terrível Xiita, e acima das prisões: as quais, sendo em grandíssimo número, faziam deles uma armada grandíssima e poderosíssima. TRAP. Embora a paz seja a mãe do repouso, da outra parte, a guerra seja mãe da fadiga, se contudo vós decidísseis abraçar a guerra, sendo que ela incita à virtude , a paz ao ócio e às lascívias.(MOLINARI, 1999, p. 859. Tradução nossa). 
Na Commedia dell'Arte, a máscara precisa de uma longa vida e de promover um longo processo de adaptação. Então, por esse processo ser muito intenso, a personagem-tipo de Capitano deveria percorrer a mesma estrada feita pelas máscaras mais vivas e essenciais, como o Magnífico e o Zanni, despindo-se o máximo possível do peso da realidade, e jogando, brincando sobre o plano da irrealidade fantasiosa; não importa que o Capitano ou o Bravo tenham se tornado assim, pouco a pouco, figura não muito diferente do Servo. Enquanto o Capitano, especialmente o Capitão espanhol, Capitan Matamorros, mantinham o seu tradicional orgulho e vaidade, aquele seu ar de suficiência cavalheiresca e de pomposidade poderia combinar com a comicidade sempre um pouco retórica dos Acadêmicos Gelosi. Porém, para ser vivo na Commedia dell'Arte, não bastava o exagero retórico, nem mesmo a ociosidade um pouco superficialmente decorativa da roupa berrante/vistosa, do chapéu 
emplumado, das botas como escudeiros ou da espada gigantesca; ocorria um jogo mímico muito fechado e os Capitães paravam de ser como eram frequentemente, um dos Enamorados para fazer parte do grupinho bufonesco. E não se pode deixar de citar o ator Silvio Fiorillo, um ator eclético que fez muito sucesso com Capitan Matamorros, assim como moldou a máscara tipo de Pulcinella na Commedia dell´Arte napolitana. E outros, como Giangurgolo e Guappo, que eram tipos de Capitano do universo popular napolitano, representando um homem de honra, gentil e romântico. Giangurgolo, que segundo Duchartre (1966) significa “ boca grande”, aparece primeiramente no séc. XVII como um valentão e dono de um temperamento forte, afirmando pertencer a nobreza. O tipo Capitano sobreviveu à Commedia dell´Arte e não voltou ao indistinto caos das máscaras carnavalescas. Outro grande ator que representou a parte do Capitão foi Tiberio Fiorilli, que recriou Scaramuccia, Scaramuzzia ou Scaramouche, e não mudou o figurino, mas não usava mais a máscara, como vimos nas gravuras de J.Callot. Fiorilli estabeleceu-se em Paris e foi o mentor artístico de Molière, ensinando-o tudo sobre a comédie italianne. Como observou Apollonio: “A natureza foi mestra de Scaramuccia e Scaramuccia foi o mestre de Molière”99 (APOLLONIO, 1982, p. 214. Tradução nossa). O aprendizado de Molière se deu em dados técnicos, como a prontidão representativa, a sagacidade e a perspicácia dos gestos e das inflexões, exatidão da reprodução e agilidade nos movimentos. Scaramuccia usava uma guitarra e uma longa capa de tecido. Na estampa de Gillot abaixo, onde a figura de Scaramuccia não fica no centro da cena, mas se concentra na trama fazendo parte do ritmo cênico, requintadamente harmonioso.  
Na arte de Scaramuccia a razão individual certamente predominava sobre a vivacidade dos acordos coletivos. O seu extraordinário sucesso parecia vir da necessidade que havia de se usar fragmentos representativos de qualidade literária. Assim como Fiorilli, colocou a Commedia dell´Arte e os outros cômicos que atuavam na Itália e na França num patamar elevado do teatro cômico italiano.

Tabela 3

3.2.2.2. OS VELHOS 

Os velhos da Commedia dell´Arte provém, segundo Nicoll (1963), das personagens das Atellanae, como o Pappus ou os cômicos doutores da mímica Dorian, e vão influenciar diretamente na criação dos tipos de Pantalone e Dottore, respectivamente. Eles normalmente surgem juntos nas tramas, por vezes são os pais dos amorosos ou os bajuladores, e se enamoram das moças jovens enamoradas ou fantescas. Como disse Nicoll: “Ele é o velho pai, o comerciante ganancioso, o marido amoroso, o guardião bobo, o conselheiro envelhecido. Em todas, ele permanece o mesmo – malvado, mesquinho e prolixo.”101 (NICOLL, 1963a, p. 253. Tradução nossa). Pantalone teve seu ancestral na comédia Aulularia de 101 He is the old father, the greedy merchant, the doting husband, the silly guardian, the aged counsellor. In all he remains the same – mean, niggardly and garrulous.(NICOLL, 1963a, p. 253). 
Plautus, chamado Euclio. Os velhos têm uma participação na maior parte bem passiva, impedindo a aventura amorosa dos jovens enamorados, seja por uma aversão ao novo ou por uma confusa avareza. Eles são ridículos na sua oposição ao acontecimento inevitável dos amorosos, acometidos de uma predisposição à lei natural das paixões amorosas e carnais que legam às personagens da Commedia dell'Arte; assim, são riziveis por serem incapazes de imaginar a verdade, na arrogância tola, para ser preenchido com toda a prudência e toda ciência, de toda prática astuta de Magnífico e de toda reflexão doutrinada de Dottore, trabalhando em pares, porque a comédia baseia-se no diálogo e necessita duplicar as personagens e quase que oferecer a qualquer um seu espelho. A ação da comédia se desenvolvia na cidade e as personagens são cidadãos de boa condição social e por isso patrões dos servos. O usual eram duas casas imaginárias assim: Pantalone (ou outro tipo afim) seu filho, sua filha e seu servos. Dottore (ou outro afim) seu filho, sua filha, seu servo (ou serva ou fantesca). Os velhos eram sempre fiéis ao vermelho e ao preto. Preta era a capa (capotto) com touca ou boina e a meia máscara de Pantalone e em cima das calças apertadas os gibões vermelhos. Pretas eram a roupa e a máscara de Dottore, como negro era o estado do pedante e do hipócrita - mas o rosto de Messer Graziano era grosso e redondo, denotando sua gula por boa comida e vinho. 
Pantalone era um nome venezianíssimo, assim como seu estilo de ser chamado de Magnífico, um título que todo burguês veneziano gostaria de ter como a nobreza. Seu primeiro nome é um quebra-cabeça: alguns dizem que São Pantaleone seria o santo padroeiro de Veneza. Outros dizem também que se chama Pantalone pelo fato de os mercadores venezianos sempre plantarem a bandeira - ou seja, o Leão de São Marcos da República de Veneza (pianta leone) - em todos os territórios que fizeram comércio na época do auge veneziano. Pantalone veste sua capa ou zimarra e em sua cabeça ele possui um chapéu sem abas remanescentes dos barretes turcos, assim como usa uma pantufa ou chinelos; isto é um dos figurinos mais antigos que temos conhecimento. Já sua máscara tem nariz adunco e é carregada nos traços graves; a comicidade, por outro lado, é gerada pelas atitudes e pela fala irritantemente aguda de um velho rabugento, embora forte e clara. Ele usa barba grande e pontuda com bigode farto. Finalmente, o sotaque veneziano era essencial na composição do Magní fico ou Pantalone di Bisognosi. A pátria de Dottore era Bolonha, capaz de mesclar a seriedade da pesquisa erudita com a bufonaria. Dottore Gracian Baloardo é somente um dos muitos nomes de Dottore. O ator Bianchi, da Companhia Gelosi, se apresentava como “Plusquamperfetto Dottor Gratiano Partesana da Francolin”. E também outros nomes, como “Forbizon Spaccastrummolo”, “Balanzoni”, “Grazian de Violoni Scatalone”, “Campanaccio”, “Hippocraso” etc. A roupa de Dottore no séc.XVI e no início do séc. XVII, segundo Duchartre (1966), era uma inspiração na vestimenta preta (cor da sabedoria) dos homens de ciências e de letras de Bolonha, onde surgiu a primeira universidade do mundo ocidental em 1088- Alma Mater Studiorum. Assim o Dottore se vestia dessa forma, todo de preto, com chapéu largo; sua máscara cobria a testa e o nariz. Normalmente, aparecia nas tramas como médico e, muito preocupado com as coisas da casa e das guloseimas a ele oferecidas, esquecia-se de olhar o paciente enfermo. Um ator famoso que podemos destacar foi Lodovico de Bianchi que representou Dottore Graziano. Ele atuou na Cia. Confidenti de Flaminio Scala depois de deixar i Gelosi quando da morte de Isabella Andreini. De´ Bianchi escreve “Le cento e quindici conclusuini in ottava” e endereçou em1589 ao duque de Florença, Ferdinando di Medici, seu mecenas; são 115 tiradas cômicas de conclusão da mente de Dottore com definições rápidas e engraçadas citadas por Molinari (1999, p. 929. Traduação nossa).

“Aqui começam as conclusões, e antes:
1- A rosa que está florida, cheira bem, 2- E o homem que caminha, não está morto. 3- Um que sempre tenha errado, nunca tem razão. 4- O navio que está em alto-mar , está longe do porto, (...) (MOLINARI, 1999, p. 929)

Tabela 4 
Analisando podemos observar a gênese de Dottore ligando-se com Tartaglia (o gago). Dottore influencia os bufões franceses, os tipos como Guillot- Gorju e Docteur Boniface, assim como na comédia franco-italiana será o Médico. 
A máscara de Dottore, que haveria perdido um pouco da sátira agressiva que havia na origem da Commedia dell'Arte. O Dottore de Medicina, de uma atividade que tocava a sensibilidade dos espectadores, sempre pronto a pensar a própria saúde. Pantalone e Dottore não foram os únicos velhos da Commedia dell´Arte, que se ampliam na medida em que estudamos os scenari. Segundo Nicoll (1963b), Perucci enumera os velhos napolitanos Pasquariello, Cola, Cassandro e Ciccombimbo. Esses velhos diferem dos dois mais famosos por surgirem como empregados, como 
Cola, servo de Capitano em “Le tre Gravide”, como nobre ou como amante, mas sempre ridículo, como em “Il Finto cieco” no cenário CORRER. 
Outra máscara tipificada nascida em Nápoles, no sul da Itália, o velho Tartaglia era, na verdade, segundo Nicoll (1963b), incerto como tipo na estrutura da Commedia dell´Arte, onde ele prestava uma função de quebra-galho, ora como empregado ora como dono de um pequeno comércio. Tartaglia é classificado por Nicoll (1963a) entre os Zanni, e era um caráter popular em Nápoles. Ele era gago e está entre os mais recentes dos tipos da Commedia dell'Arte que usualmente aparecem como servo - e às vezes dono de pousada, como Giangurgolo. Ele também surge como um pai, colocando-se na função de Pantalone. Seu traje sugere sua posição no palco, misturando-se a do médico com a de um homem uniformizado como disse Apollonio: “De fato, muito mais do que o Magnífico, o Doutor, também na figura de Tartaglia, que procurava variar a forma, a cor e o gesto da máscara, era utilizado em personagens complementares: era o Conselheiro. ”104 (APOLLONIO, 1996, p. 276. Tradução nossa). E, contudo, Ottaviano de Ferrara foi ator mais famoso que representou Tartaglia, atuou em Nápoles em 1602.

3.2.2.3- OS ZANNI 

A parte mais interessante e enigmática da Commedia dell´Arte, segundo Nicoll (1963b) são os serviçais cômicos - ou como são chamados, os Zanni - derivados das personagens das atelanas: Sannione ou zannone. Zan ou Zanni, derivado do diminutivo de Gianni ou Giovanni, pode ser traduzido como João ou José (Zé). Inspirados nos tipos da Itália, muitos países europeus no renascimento chamaram seus palhaços de John, Jean Potage, Hans Wurst e Ivanoushka-Douratchok. Devemos notar que a palavra Zanni pode ser usada tanto na forma genérica como uma forma específica, pois Zanne aparece como lista de personagens em muitos scenari de Correr. Por outro lado, temos uma forma mais específica no cenário que aparece na lista dos dramatis personae, mencionados como personagem Zanni. Então devemos lembrar sempre que a palavra Zanni ou Zan pode ser tanto usada para designar o servo em particular, como também para indicar o papel em geral. Além do nome Zanni, podemos dizer que essa denominação foi designada para as duas máscaras de Bergamo: Arlecchino e Brighella. Como notou Nicoll: “ (...)esses Zanni a quem você encontrava todo entardecer na praça de sua cidade” (NICOLL, 1963a, p. 263. Tradução nossa). Apresentamos alguns nomes de Zanni como: 
Truffaldino, Arlecchino, Pasquino, Tabarrino, Tortellino, Naccherino, Gradellino, Mezzetino,Polpetino, Nespolino, Bertolino, Fraginolino, Trappolino, Zaccagnino, Trivellino, Tracagnino, Passerino, Bagattino, Bagalino, Temellino, Fagottino, Pedrolino, Fritellino, Tabacchino, Burattino106, Francatrippa, Guazzetto, Mestolino. Esses nomes de Zanni provem dos vales distantes das cidades, bergamasco, bresciano e valtellinesi, onde as corporacões dos carregadores (facchini) faziam seu recrutamento. Eram miseráveis, caipiras, mal educados nos padrões da corte, estrangeiros nas cidades, isto porque ao servo se dá um nome genérico e que se aplica ao diminitivo muito difundido, aquele que no uso vulgar, se reduzia a nada, a um som grotesco, referindo-se às coisas da cozinha. Segundo Nicoll (1963a) foi Petraccone quem os classificou como 1˚ e 2˚ Zanni. 
O primeiro Zanni deve ser inteligente, hábil, espirituoso, aguçado; ele pode causar perplexidade, trapaça, truque, e ilude todo mundo; deve ser cinicamente esperto, mas com moderação, de modo que seus chistes, que os latinos chamam gozador, no italiano moderno, significa “títere, fantoche, marionete”; etimologicamente, esse nome significa marionete no italiano moderno e provém da personagem da Commedia dell´Arte que derivou o nome de buratto, que significa “tecido para peneirar”, do latim buratinus: “peneirador de farinha”, isto é, de movimentos descompostos, desarranjados. Por fim, o Zanni Burattino deu seu nome para designar as marionetes italianas. 
Na Commedia dell´Arte existe a dificuldade em distinguir o 1˚ do 2˚ Zanni, pois não há tradição das personagens-tipo diferentes, mas sim tarefas ou afazeres distintos nessa classificação. A relação entre personagens sérios e cômicos, ações e fragmentos cômicos é interacional: quando prevalecem as ações das personagens-tipo sérias, os outros tipos cômicos diminuem a frequência de sua presença e sua importância e vice-versa; assim, dessa forma, segundo Apollonio (1982), se caracteriza como uma lei fundamental na Commedia dell´Arte. 
A parte séria era escrita pelo autor ou capocomico e a parte cômica era improvisada; esse exemplo aconteceu no texto de Goldoni, escrito para Arlecchino Sacchi: Servittore di due patroni. Os Zanni lombardos do norte da Italia eram Franca Trippa, Fritellino, Bagattino, Guazzetto, Mestolino, entre outros, que usam um bastão (batocchio) e se vestiam com o figurino parecido aos dos camponeses, com calças e blusas largas, e no princípio, usavam máscaras inteiras, ou seja, cobrindo todo o rosto. 
Neste momento, retomo a idéia do capitulo 1, em que abordei o Uomo Selvatico, pois ele influenciou a maneira de ser e de como fora criado o Zanni: seu rosto bestial, sua maneira de falar ingênua e profunda, como se refletiu na argúcia camponesa. Assim, Zan Ganassa aparece na segunda metade de 1500, quando a Commedia dell'Arte já era fixada em suas ideias e normas. Como observou Apolllonio (1982), a tradição não se reagrupa ou se conecta sozinha, regressa à vida quando se tem uma ideia já formalizada. O primeiro Zanni tem na Commedia dell'Arte uma tarefa distinta do segundo: que os servos entram por fazerem parte do espetáculo e, quando movem a máquina da ação, são personagens virtualmente sérios; isso mostra que a comicidade é fragmentária e que a ação se sustenta de um modo contrário a uma inteligência moral, não importa quão aproximativa. Então nasce a distinção entre o servo bobo, estúpido, e o servo esperto, astuto, trapaceiro, que é uma distinção de função mais do que tradição. Na comédia do séc. XVIII, as quatro máscaras estáveis sobreviventes, eram dois servos ao lado de Pantalone e Dottore: Brighella, o primeiro servo, era como se dizia, bergamasco, porém, de Bérgamo alta, onde o ar era mais rarefeito, enquanto Arlecchino era da baixa, onde o ar era estagnado e a inteligência anestesiava; mas esses são reflexos tardios, que na tradição primitiva do séc. XVI não tinham valor. Brighella era, segundo Apollonio (1982), um homem esperto da parte mais alta da montanha, assim como mais escuro, por estar queimado de sol. Da França, temos o mito da caccia selvaggia, do diabo Alichino, da Mesnie Hellequin, esses tipos aparecem já nas mascaradas e nas festas carnavalescas, e se apresentavam na personalidade teatral mais rigorosa no Jeu de la Feuilleè. O Zanni italiano, vivo numa realidade urbana, embora consciente, através das origens jocosas da tradição do Uomo Selvatico, encontra o bufanesco diabo francês; aparentemente é uma nomenclatura que se Jeu- Forma dramática medieval (séculos XII e XIII). O termo corresponde ao latim ludus, - que designa representações litúrgicas – e a ordo, texto sagrado “ordenado em tiradas”. O jeu dramatiza episódios da Bíblia, mas se estende, a partir do século XIII, a temas profanos (ex: Le Jeu de la Feuillée de ADAM DE LA HALLE), agrupando formas bastante diversas: féerie, parábola, revista satírica , pastorela (PAVIS, 1999, p. 219)
inicia com uma longa série de Arlecchini, destinada a concluírem na graciosa estilização da máscara de 1700. Na realidade, o bom Zan Ganassa, assumindo o jogo zannesco e as tradições francesas de Hellequin, demostra ser o servo capaz de qualquer atitude, da falta de jeito mais inerte às travessuras mais pérfidas e diabólicas. O chamado primo Zanni (1º Zanni) são Brighella (Sbrigani), Beltrame, Buffetto, Gradelino, Scapino, Truccagnino, Mezzetino, Fenocchio, Flautino, Bagatino; também os nomes têm derivações francesas, como Narcisino, Turlipin, Gandolin, assim como na Comédie Française, Sganarelle, Frontin, La Montagne, entre outros . Uma observação pertinente é que este primo Zanni era mais velho, experiente, de meia idade, embora pareça estranho a quem conceba a máscara através da deformação saborosa sentimental e ingênua do Pierrot romântico. Mas a tradição pedia que o servo da comédia antiga, em longos anos de serviços e depois de ter pego nos braços o patrãozinho, teria adquirido uma confiança, que o fazia ser um da casa a favor da intriga destinada a perpetuar a família , através do casamento final. A verdade psicológica era tal que a juventude era confidente e liricamente efusiva, expansiva, enquanto a maturidade e a velhice despertam a inteligência sobre as contradições do mundo, que é tema eterno da comédia. De tal modo, os atores das partes cômicas se tornavam mais importantes (Zanni ou servetta), pois os atores mais velhos tinham maturidade e perspicácia para melhor compor a cena cômica do que os jovens com seu lirismo, já que era assim, condição primordial do corporativismo artesanal dos cômicos dell´ arte, impondo essa espera aos jovens atores. Dessa forma, a escola dell´arte ensinava e levava a diante suas lições. Carlo Cantú (1609-1676) era da terceira geração da tradição dos cômicos dell´arte; nasceu em 1609 e começou a representar em 1632, aos 23 anos. 
Sua máscara de 1º Zanni é engrossada por uma barba negra e crespa, cabelos cheios e numerosos e um gorro em cima (de padeiro ou de cucco-cozinheiro), olhos animalizados olhando quem está a sua frente, grande nariz adunco cai até sua boca sensual. Carlo Cantú foi Brighella na Finta pazza di Parigi (1645). Ele foi famosíssimo Zanni com o nome de Buffetto na Itália, onde estava ao serviço do Príncipe de Parma, tendo ido depois trabalhar na França. Cantú era hábil tocador de violão e de outros instrumentos, como muitos outros cômicos dell´arte. Ele foi mestre de Domenico Biancolelli, grande Arlecchino em Paris, e escreveu esta obra mista de autobiografia, letras e poesia: “ Il cicalamento in canzonettte ridicolose, o vero trattato di matrimonio tra Buffetto e Colombina comici”(1646). 
Como caráter tipológico, Arlecchino era um Zanni faminto, tolo e desajeitado. Sua máscara negra tinha a ideia do trabalho no campo e com o carvão. Descendente dos diabos medievais e das figuras folclóricas do Norte da Europa, como Herlequin, inspirou os cômicos italianos na criação de um dos tipos mais populares da Commedia dell´Arte. Uma das várias etimologias do nome Arlecchino, como notou Nicoll (1963b), pode ser de il lecchino – o pequeno glutão – aquele que lambe, que prova tudo, e uma outra denominação de “Arles”, que é um maroto e malandro; assim como Arlecchino pode ser um tipo de pássaro chamado harle. Tabela 5- Grandes interpretes de Arlecchino na Commedia dell'arte.
O cômico dell´arte Alberto Spinelli fazia a parte do segundo Zanni - Zan Ganassa - e tinha um figurino aderente ao corpo, cheio de panos e farrapos com vários remendos (não era a composição graciosa do figurino bem delineada de losangos do séc. XVIII), um feltro grosso com os pezinhos de lebre de caçadores e a mesma máscara negra; que depois o célebre cômico Tristano Martinelli109 iria modificar, transformando-a em um rosto bestial de couro macerado, cornudo, enrugado, com um maço de pêlos. Era significativo que o personagem do segundo Zanni fosse interpretado por aqueles atores que na Commedia dell'Arte representavam a tendência de ser a estrela de um jogo irrefreável e criativo. O famoso Tristano Martinelli, que inventou e interpretou por muito tempo Arlecchino; segundo Apollonio (1982), ele era mais um bufão do que um ator. Escreveu uma obra designada: Compositions de Rhetorique (1601) com suas memórias e cenas cômicas. Outro grande cômico foi Domenico Biancolelli e seu Arlecchino, em outro aspecto da arte de Biancolelli, perde toda sua intenção grotesca, mas procura o esforço de reassumir a tradição e de defini-la em uma moldura de fantasiosa agilidade, graça e alegria. A máscara arlequinesca de Alberto Gavazzi e de Tristano Martinelli tinha um semblante macabro e diabólico - e por todo o séc.XVI, o figurino foi remendado, sujo e miserável. Mesmo o seu imediato predecessor, Locatelli, que interpretava Trivellino, se apresentava ao lado do 1º Zanni, Brighella, com camisão e calças largas, em que se seguiam os remendos. Domenico Biancolelli se apresentava com o figurino em losango e a grande gola branca, que na tradição do séc. XVII foi bem adequado ao gosto da época. Biancolelli foi o Arlecchino mais famoso do ápice da Commedia dell´Arte, aquele que deu definitiva celebridade à máscara de Arlequim. Ele era enteado de Carlo Cantú, filho de Isabella Biancolelli Franchini e Francesco (ator dell´arte). Sua vida passa entre os cômicos e a corte, tanto em Parma quanto Paris, em ambiente de cômicos dell´arte. Quando o pai morreu, sua mãe, a Colombina Biancolelli foi cortejada por Carlo Cantú e os dois ficaram juntos. Domenico Biancolelli era chamado do apelido lombardo de Meneghino; quando tinha 7 anos e meio estreou na Commedia dell'Arte e o Tristano Martinelli nasceu em Mantova, em 7 de abril de 1577, e sua carreira de ator provavelmente começa em 1584 ou 1585, na Companhia i Confidenti, grande Cantú, passou-lhe seus segredos da vida do palco onde Buffetto tinha nascido. Assim, Biancolelli criou Arlecchino como um agradável gozador. Chamado a Paris, em 1661, pelo duque de Parma, pertenceu à aristocracia dos cômicos dell´arte, como observou Apollonio110: “ele era desconhecido em Paris quando vai até lá” (APOLLONIO, 1982, p.249. Tradução nossa); tinha em torno de si grandes nomes da Commedia dell'Arte e isso lhe trazia peso e uma grande necessidade de trabalhar sua perícia e estar a altura dos outros. Biancolelli morreu de pneumonia inesperadamente depois de ter suado bastante “brincando” e parodiando diante do rei da Franca; contudo foi um grande estilizador, compilando todos os elementos da Commedia dell'Arte, reduzindo-lhes a uma elegância compositora a arte dos cômicos dell´Arte. A sátira que a geração anterior assim como a geração sucessiva havia amado, quase que completamente “afrancesada”, será reintroduzida pela obra do irrequieto Constantin (1729), para dar novamente vida à Commedia dell’Arte. A gozação se esconde, se resigna, numa situação semelhante, em que Scapino, no Inavvertito del Beltrame, dizia que o roubo111: “em um homem importante é evento de estado, em um comerciante é inteligência e em um desgraçado é latrocínio” (APOLLONIO, 1982, p. 250. Tradução nossa). E os 173 scenari de Domenico Biancolelli que estão na Biblioteca do Grand Opéra de Paris expressavam o ponto de vista de Arlecchino e do ator que o representava, ou seja, ele escrevia “eu fiz isso, eu fiz aquilo, eu disse isso etc” ao invés de “Arlecchino fez isto ou aquilo”. A publicação de outro grande Arlecchino, Evaristo Gherardi, em Paris, demonstra o quanto a Commedia dell’Arte se distanciou do seu protótipo, isto é, da comedia italiana “all´improvviso”; são outras personagens, outra cenografia, outros figurinos; a espetacularidade, o número de personagens é maior: ali se encontra uma sombria paródia da mitologia, da tragédia moderna e dos atores trágicos franceses. Os títulos das comédias foram idealizadas para suscitar curiosidade e algumas cenas são também em verso.
As vestes de Arlecchino, remetendo aos antigos farrapos dos camponeses, provavelmente introduziram mais tarde os pedaços coloridos, e o vermelho carmesin, que era cor de guerra, de revolta e de diaboleria - ou também da santidade heróica. Antigamente, a vestimenta do segundo Zanni deveria ser uma triste miscelânia de preto e cinza; escuro do carvão, ou do inferno, e o indistinto cinza da miséria esfomeada. Os Pulcinella´s se mantiveram fiéis ao acordo entre o branco e o preto. Mas Biancolelli, que foi o Arlecchino mais fértil de invenções, iniciou a estilização da veste e dos remendos preparando a estrada aos Arlecchinos do séc. XVIII e de suas alegres e contrastantes cores. 

3.2.2.4- PULCINELLA e a Commedia dell´Arte do sul. 

A etimologia do nome Pulcinella é incerta, mas a célebre máscara é de Acerra, sul da Itália, cujos avós podem ser Manducus ou Dossenus, com o nariz agudo. Pulcinella ou Pollicinella ou Polcinella provém segundo Bragaglia (1982) de pulcino (pintinho de galinha) – alusão à timidez saltitante dos galetos. 
Existiu uma diferença entre a Commedia dell´Arte do norte da Itália e a Commedia dell´Arte do sul. Esta última é originária de Veneza, mas o mito cômico dos bufões os colocava ora em Bergamo, ora em Modena - e esse era o centro da fabricação de máscaras, que segundo Apollonio (1940) se chamavam – volti modenesi - rostos modeneses, ou seja, situada em toda lombardia - ou, se preferir a Itália setentrional, em que a cultura local permitiu a coexistência da mais esboçada e perversa comicidade bufonesca com a solene estrutura erudita. Já que a Commedia dell´Arte da região da Lombardia - região norte – onde estão as cidades como Bergamo, Milão, Modena etc, evocavam a tristeza e a violência nas representações dos cômicos dell´arte; em contraposição, a vida napolitana, o Sul da Itália, era mais amiga do tumulto e do colorido, e o ator cômico era o intérprete dessa alma, era mais movimentado, louco e mais jovial. A piada era arguta, a farsa sabia ser alegre sem empenho grotesco e a sensualidade se aliviava na área aberta, se enfeitava sem tristeza e a violência que os lombardos amavam. A Commedia dell'Arte napolitana veio depois da lombarda no sentido de sucesso, um exemplo que foi retratado por J. Callot na festa napolitana, no já citado Balli di Sfessania. Então, os cômicos lombardos que tinham feito escola, assim como seus alunos napolitanos não poderiam deixar seu público sem as personagens mais famosas e populares como Coviello representado pelo seu mais famoso cômico dell´arte, Ambrogio Buonomo, e Pulcinella por Andrea Calcese. E, na segunda metade do séc. XVI, o vilão da antiga farsa italiana vem representado como um camponês da cidade de Acerra (antiga cidade de Atella), com novo nome recuperado da velha aventura dos rústicos e grosseiros na cidade, mudando sua condição até chegar ao grande burguês. A imagem do aldeão urbano é difundida no texto dos anos 1500, especialmente nas comédias menos “eruditas”. Assim, foi atribuído a Pulcinella o caráter de bobo e de haver nascido em Acerra, mas no tipo camponês ele poderia não revelar a malícia ou astúcia na estupidez. Esse arquétipo do caipira que se finge de bobo é visto em vários exemplos na dramaturgia brasileira, como em “Burundanga”, de Luiz Alberto de Abreu (1997), ou em o “Juiz da Paz na Roça”, de Martins Pena. O abade Perrucci, segundo Apollonio (1940), classifica Pulcinella como 2° Zanni, já que o primeiro Zanni os lombardos faziam com a máscara de Brighella. Mas na longa vida de Pulcinella, o papel de segundo Zanni sempre foi assim, pois a sua parte funcionava frequentemente nos dois sentidos dos Zanni (1°e 2°). Como o papel de 2° Zanni compete àquele servo que vem fazer o estúpido do 1° Zanni, portanto bobo, insensato. Mas não é uma regra. Para Andrea Perrucci, Pulcinella poderia ter dois servos dele: Coviello e Pascariello, que aparecem em Trappolaria de Gian Batista della Porta. Assim, Pulcinella não é apenas o Arlecchino da Commedia dell´Arte meridional, o 2° Zanni tolo; ele também é o 1° Zanni, esperto. Ele é Brighella ou Arlecchino e vice-versa e ao mesmo tempo. Quando os dois Zanni jogam juntos na mesma cena, Arlecchino é bobo e espirituoso, ingênuo, mas malandro – e, ao mesmo tempo, honesto, esquecido, guloso, bom homem e muito engraçado; Brighella é desonesto, insolente, travesso, linguarudo, falastrão de injúrias e fala mal dos outros, bajulador, mas não é ridículo. Pulcinella segundo Bragaglia (1982) pode ser homem ou mulher, masculino ou feminino, rico ou pobre, jovem ou velho, aristocrático ou popular, ocioso ou ativo, enganador ou gentleman, inteligente ou burro, cínico ou sentimental, falso idiota, elegante ou maltrapilho, bandido ou guarda de monastério, soldado desertor ou herói. 
Uma particularidade curiosa de Pulcinaella, segundo Bragaglia (1982) é de ser uma máscara sem ser uma personagem de papel bem fixado; é assim, uma questão contraditória, porque a Máscara dell' Arte tem um determinado tipo humano com tradicional repertório de lazzi, ou seja, ela faz sempre a mesma parte, recita sempre a mesma coisa, diz a mesma coisa em qualquer comédia por princípio e está contida em limites bem demarcados. Mas, é típico de Pulcinella bater (bastonada) e fazer reverências. É culpa do destino humano se Pulcinella se permite ser, ao mesmo tempo, independente e servil, corajoso ou covarde, idiota ou inteligente, ou seja, um jogo duplo, pois é a vida que o faz agir assim: bobo e esperto ao mesmo tempo, como um bufão de um príncipe caprichoso. Seu Príncipe é a necessidade, a indigência. Ele é único, mas, pode haver um sósia, dois Pulcinellas, com diferentes 
características na mesma trama. Existem comédias com muitos Pulcinellas, como exemplo: “Canzuni di carnevalani” (1700) com três Pulcinella(s). Em qualquer trama se pode ter os amorosos, o pai nobre, o primeiro ator, o tirano, a serva, a rufiana, a ama, o servo e assim, todos os outras personagens são caracterizadas por Pulcinella. Várias máscaras napolitanas se adaptavam a diferentes papéis, assim como Cola e Pascariello foram velhos, correspondentes ao Pantalone, mas também fizeram papéis de galantes ou jovens. Como característica vocal para interpretar Pulcinella, o ator deveria fazer uma voz estridente, como de uma bruxa, assim como usavam um instrumento para chamar atenção: la franceschina era um instrumento de duas latas, através das quais se passava um cordão e fazia-se um som estranho com a fala. Também encontramos um dado curioso, um artifício para se modificar a voz do ator que ainda hoje é utilizado pelos manipuladores de bonecos na Itália. Os atores dell´arte usavam um recurso sonoro chamado pivetta, que era um instrumento de lata ou de osso composto por duas lâminas, uma côncava e outra convexa, atravessada por uma linha dentro, fio bem estrito. Colocada no fundo do palato, permite falar produzindo uma voz estridente, que também tem a função de amplificar a voz. Temos notícia do seu uso com atores no antigo teatro grego e romano, assim como por parte dos bufões, dos trovadores e dos menestréis durante a Idade Média. Hoje, é utilizada, sobretudo, pelos bonequeiros de tradição napolitana para fazer uma voz estridente. Quando Pulcinella foi a Londres e se naturalizou Punch, os bonequeiros mantiveram essa prática. No passado, essas técnicas foram difundidas entre os bonequeiros, titiriteiros (aquele que manipula outras pessoas como se fossem fantoches; manipulador de bonecos, que trabalha com fantoches ou marionetes; aquele que manipula outras pessoas como se fossem fantoches) ou marionetistas nas tradições italianas, 
Quando acompanhava uma palestra de Donato Sartori, em fevereiro de 2013, em Pádua, conheci um bonequeiro que me relatou o uso da pivetta e como ela era construída na cena das marionetes, da mesma forma, pelos atores dell´arte: para fazer uma voz estridente como papagaio. Alguns bonequeiros também poderiam produzir o som sem o artifício da pivetta.  
Destacando-se a tradição bolonhesa de bonecos; desta forma, entre os materiais guardados de Augusto Galli, temos quatro pivette conservadas na coleção Zanella em Bolonha- Itália. 
Um grande ator e possível criador do personagem-tipo Pulcinella foi Silvio Fiorillo. Silvio Fiorillo é, sem dúvida, um dos grandes protagonistas do período heroico da Commedia dell'Arte. Ator seguramente eclético, pois era intérprete do Capitan Matamorros e criador da parte de Pulcinella e quase que seguramente, também do personagem de Scaramuzzia. Fiorillo nasceu em Cápua, entre os anos de 1570 e 1575. Em 1600-1601 fez parte da companhia dos Accesi de Pier Maria Cecchini e Tristano Martinelli e fez sua primeira turnê em Paris, na corte de Enrico VI e Maria de' Medici. Segundo Bragaglia (1982), o maior intérprete de Pulcinella da primeira metade do século XVII não foi Silvio Fiorillo mas o seu sucessor, Andrea Calcese vulgo Ciuccio. E outro grande intérprete de Pulcinella foi Michelangelo Fracanzani. Ele foi primeiro Pulcinella famoso parisiense do século XVII, pois foi o primeiro a introduzir a máscara na corte francesa, e deu ao palhaço napolitano as duas corcovas do bufão francês. Isso custou uma certa censura francesa para que se adaptasse aos costumes mais requintados, deixando as bufonarias mais pesadas para seus patrícios daquele período.

3.3. Dramaturgia dell´Arte - Soggetto, scenario, canovaccio e lazzi - e o tênue conceito de improvisação 

Como disse Nicoll, “Nós temos que lembrar sempre que a Commedia dell´Arte foi essencialmente uma comédia do ator e não do dramaturgo” (NICOLL, 1963a, p. 236).
A partir desse pressuposto vamos abordar a questão da dramaturgia na Commedia dell´Arte, a dramaturgia do ator, a dramaturgia da cena dell´arte – que era chamada comedia de improviso ou a soggetto (argumento), pois havia o traço incerto dos roteiros que elencava rapidamente a trama (canovaccio) com signos convencionais e com indicações gerais de conteúdo; os atores dell´arte teciam e bordavam os diálogos, procurando uma por uma, as palavras. Um elemento se destaca na Commedia dell´Arte: a improvisação. Mas, como acontecia esse improvisar das falas? Como e qual o método de trabalho dos cômicos? Um dos grandes atores, Evaristo Gherardi, nos explica como foi transmitido pelos cômicos italianos de geração a geração, segundo Taviani (apud MOLINARI, 2001): “os atores liam o tema (soggetto) um pouco antes de entrar em cena”. Quando se diz que era um bom ator ou atriz de Commedia dell´Arte, fala-se de alguém que tem uma personalidade, que representava mais com a própria imaginação do que com a memória, que compunha suas falas no momento exato que representavava. Essa habilidade pressupunha casar bem as palavras e a própria ação com as palavras e ações do companheiro, inserindo-se subitamente na linha de ação do outro e movendo-se como ela pede, fazendo crer que tudo já era uma coisa pronta e preparada. Um ator que representa simplesmente da memória, não entra em cena senão para dizer sua parte como foi decorada ou ensaiada, e está muito ocupado para prestar atenção nos movimentos e nos gestos dos companheiros. Como notou Molinari (2001), pode-se comparar esse ator que representa, tremendo com a lição decorada, ao eco que não falaria se não houvesse quem falasse primeiro. Vejo isso como uma grande descoberta do método de improvisação dos cômicos dell´arte. Essa ideia romântica de improviso da Commedia dell´Arte como teatro da espontaneidade e da liberdade criativa é equivocada, já que seu papel está tão bem estabelecido e delineado na trama que o ator tem que estudar bem o pensar da personagem e como essa falaria, qual seu repertório de palavras, frases, assim como os gestos. Por exemplo, uma Enamorada deveria decorar poesias e palavras agradáveis e rimadas, um Arlecchino deveria decorar palavrões, nomes de guloseimas e também ter destrezas corporais e, um Dottore, saber nomes de doenças em latim ou citações prontas. Em lugar de “scenario” se dizia um tempo “soggetto”. Segundo a definição de Perrucci (2008): 
O soggetto nada mais é do que uma trama das cenas sobre um Tema formado no qual, em resumo, se sugere uma ação que deve ser dita e feita pelo Recitante, de improviso, se diferenciando por atos e por cenas, assinalando-se as cenas nas margens, onde se anota aquela personagem que tem que sair, e se mostra com uma linha quebrada, dizendo: "vai", abreviado de "vai embora", ou "vão embora". (PERRUCCI, 2008, p.186. Tradução nossa). 
Então, aqui podemos sublinhar que havia uma “deixa” para que o outro ator dell´arte soubesse quando o outro havia terminado sua fala improvisada, dizia-se “vai!” 
Às vezes, o scenario era chamado também de canovaccio, mas tal termo caracterizava em modo muito inexato aquilo que originalmente era um scenario. O canovaccio é uma espécie de traço esquemático e monótono, com que de se pode adornar tudo o que se deseja; já o scenario incluía, ao contrário, todo o resto: o sabor da ação cênica, uma fábula bem definida e concentrada que escondia sob a aparência esquemática, o tesouro de teatralidade, isto é, o potencial estado do enredo. O ator não era, contudo, autônomo e deveria seguir rigorosamente as indicações que encontrava no caminho e que não lhe permitia sair muito da rota. Como uma comparação mais apropriada, seria o scenario o rascunho de um quadro, quando o pintor vai seguir os traços e finalizar a obra. O scenario ou canovaccio é um esboço para que o espetáculo da Commedia dell´Arte seja encenado naquele momento. Na realidade, estes scenari foram escritos visando a psicologia e a lógica teatral dos cômicos dell´ Arte, pois ao público leigo pode parecer confuso, nebuloso, mas um homem de teatro compreenderá sua linguagem facilmente e entenderá a lógica do fazer teatral. 
Os temas para um scenario são: novela (1), comédia antiga (2), opera literária e popular (3) e episódio histórico (4).
Por ser livre do comando de um único autor, a Commedia dell´Arte não foi completamente emancipada da literatura e a influência do elemento literário se refletia sobre o soggetti de maneira notável, mesmo aqueles textos literários elaborados pela comédia ao improviso e adaptados aos seus caracteres particulares (tipos) terminavam por assumir os tratos próprios, tornando-se quase irreconhecíveis: a trama se complicava e se coloria, a ação prendia-se sobre os diálogos, inserindo truques (lazzi) divertidos; a escolha das personagens se adaptavam às composições das companhias dos cômicos, que mudavam os nomes e os 5 atos da comédia literária se reduziam a 3 atos.  
O repertório da Commedia dell´Arte era cômico, mas não único. Como por exemplo, na compilação de Flaminio Scala em sua obra “Il teatro delle favole rappresentative”, publicado em Padova, em 1611, com 50 scenari relativos a comédias, tragédias e pastorais. Na Commedia dell´Arte, o número de personagens variava pouco: eram mais ou menos o mesmo, quase sempre entre dez e doze papéis principais e alguns coadjuvantes. A coleção de B. Locatelli, em “ Orlando furioso”, é uma exceção que demandava 44 personagens. A ação da comédia se desenvolvia na cidade e as personagens eram cidadãos de alta sociedade. O que era usual era assim: Pantalone (ou outro tipo afim), seu filho, sua filha e seu servidos (ou serva); Dottore (ou outro tipo afim), seu filho, sua filha, seu servo (ou serva ou fantesca); Capitano e seu servo. Às vezes, o velho era casado com uma jovem. Os Enamorados, às vezes, não apareciam como filhos de Pantalone e Dottore, mas como autônomos - e nesse caso, a 1 Enamorada (primadonna) era de preferência viúva. A ação era embasada em uma complicada intriga amorosa. Outros amantes, os servos e os velhos, por assim dizer ex-offico, apaixonavam-se também na trama. Até a conclusão do 3º ato, pois o amor encontrara todos os obstáculos possíveis e imagináveis, mas no final, o amor triunfa sempre, exceto para os velhos que, apesar de desonrados, ao término da comédia perdoavam os filhos e os servos em suas artimanhas, e terminam por regozijar-se daquilo que, por três atos, haviam colocado toda a sua fúria. O mesmo acontecia na Comédia Antiga, em que havia um personagem, um prisioneiro de piratas, que se tornava escravo, e que no momento oportuno revelava algo incógnito. O único elemento que na construção desta comédia a diferenciava das outras era a extraordinária complexidade e o desenvolvimento engenhoso da trama, que se enrolava em si desde o início, num encadeamento caprichoso, que mantinha a atenção do espectador até o fim da comédia, fornecendo unidade, equilíbrio e estrutura arquitetônica por todo o espetáculo. 
O interessante é que os atores da Commedia dell´Arte assistiam casualmente um espetáculo teatral (drama, tragédia, comédia etc) e, gostando deste, poderiam reconstruí-lo na memória, adaptando-o aos cômicos e aos tipos de que dispunham e ao público para o qual representavam, melhorando ao seu gosto, como Miklasevskij disse: “ (...) ninguém ousava impedir um Molière de obter obras geniais a partir de obras estrangeiras de talento” (MIKLASEVSKIJ, 1981, p. 66. Tradução nossa). A comédia era assim alicerçada sobre as intrigas amorosas de que os italianos tanto gostavam. O autor do scenari, ao perseguir propósitos exclusivamente teatrais, escolhia os meios convenientes a ele, sem preocupação de sua ingenuidade, inverossimilhança ou falta de psicologia. A inverossimilhança desses espetáculos chamava a atenção: uma moça toma sonífero para se fazer de morta, ela é enterrada e seu plano se realiza, seu irmão não a reconhece porque estava travestida de homem. Em geral, se usava muito o travestimento, bastava que Arlecchino se travestisse de mulher, para que fosse confundido com a dona do vestido usado - claro que a plateia sabia da verdade e se divertia muito com essa confusão. Como observou Bergson (1993): 
Chamamos a atenção para isto: não há comicidade fora do que é propriamente humano. Uma paisagem poderá ser bela, graciosa, sublime, insignificante ou feia, porém jamais risível. Riremos de um animal, mas porque teremos surpreendido nele uma atitude de homem ou certa expressão humana (BERGSON, 1993, p. 7). 
A inverossimilhança estava presente também no desenvolvimento dos caracteres ou personagens na Commedia dell Arte: as personagens eram muito esquemáticas em seus traços essenciais e sobretudo uniformes; porém, os ótimos atores completavam os poucos requisitos do scenario, adaptando as personagens a si, encarnando sua própria individualidade e tornando-as mais vivas e diversificadas, explorando os conhecimentos oferecidos por este ou aquele scenario; já que este não fornecia personagens complexos e sim tipificados, que existiam fora de qualquer trama, como Pantalone, Dottore, Capitano, Zanni. Em outro modo, mesmo nos scenario, pode-se encontrar um perfil bastante claro das personagens-tipo. Assim, segundo Miklasevskij (1981), um dado scenario é claramente esboçado para um tipo de atriz desonesta (inteligente e astuta), cínica, falsa, mentirosa, que renuncia o amor pelo dinheiro. Mas as qualidades que não abandonavam mais os cômicos era o conhecimento e a familiaridade com as exigências cênicas e a teatralidade da Commedia dell´Arte. Os atores sabiam que o público queria ver algo divertido e eles utilizavam de todos os recursos possíveis para possibilitar tal diversão: animais em cena, cenas de briga, doenças e seus modos de tratamento, discursos insensatos de loucos, cenas de fuga etc, enfim, tudo que suscitasse o ridículo não no modo de representar, mas no material cômico. O ato iniciava com um episódio que enriquecia subitamente a ação com certa tensão. Essa se mantinha sempre constante, mas quando começava a cair, recorria-se a episódios divertidos e truques que as vezes, ao término do ato, davam vida a um final grandioso, capaz de impressionar o público com meios muito simples. Esses episódios divertidos eram os lazzi, que na costura das tramas, enlaçavam a rede de intrigas. 
Os “lazzi” vêm revestidos de muita importância na comedia italiana; eram episódios de personagens fortemente cômicos que se inseriam na ação - às vezes, sem uma conexão ou relação direta com a trama (scenario ou canovaccio). Antes se dizia “azzo”, que poderia significar “azione” (ação) e somente em seguida “azzo” transformou-se em “l´azzo” e depois em “lazzo”, significando bufonaria, burla, chiste e também gague. O termo era usado para não somente indicar os gestos, a representação em stricto sensu, mas também em argúcia verbal e humor. Outra significação, segundo Miklasevskij (1981), que seria absurda, laccio significa laço, cordão, corda que amarra uma simples cena na outra, proposta por Quadrio e Moland. Os romanos chamavam de “tricae” e os atores italianos chamavam de “trucco” (truque ou trapaça) ou burla (piada, graça, palhaçada). Quando o público começava a ficar entediado ou alguns dos atores esquecia aquilo que deveria fazer para seguir o scenario - ou mesmo não entrava em cena a tempo - ou quando, ao término de cada ato, era necessário levantar o tom, a qualidade do espetáculo, os intérpretes começavam a “fazer sua graça”, seu truque, e recorriam ao seu lazzo. Existiam especialistas particularmente hábeis neste gênero de representação e era chamado lazzisti. Geralmente se recorria aos lazzi nos casos de extrema necessidade supracitados, simplesmente por seus postos cômicos e por dar a possibilidade dos atores mostrarem suas habilidades. Nos scenari e canovacci eles eram indicados sempre e por toda parte com lazzi, as vezes acompanhados de uma explicação circunstanciada. No scenario de Il Pedante de Flaminio Scala, segundo Miklasevskij (1981), é descrito um lazzo do prato de macarrão e veremos na tradução de Barni (2003): 
Arlequim com um prato de macarrão oferecido a Pedrolino, por parte do Capitão; entrega-o a ele. Pedrolino, chorando, aceita, e diz que chora por causa de um mal súbito de sua mulher. Assim, chorando, começa a comer. Arlequim também chora e começa a comer chorando: nisto 
Burattino vê os dois comendo macarrão desata a chorar e, chorando, ele também come: terminam o macarrão; Pedrolino, chorando, diz a Arlequim: “Beije de minha parte as mãos ao Capitão", e sai. Burattino diz o mesmo, chorando e sai. Arlequim, chorando lambendo o prato e vai embora, 
e aqui termina o primeiro ato (BARNI, 2003, p. 319). 
Dependendo do tipo de público e dos atores dell´arte, se não fosse muito sofisticado, recorria-se ao lazzo mais vulgar - por exemplo, pegavam pulgas e as comiam ou faziam a cena da circuncisão do judeu, entre outros. Na coleção mais antiga dos scenari, cada lazzo era acompanhado de uma explicação, mas os lazzi de maior sucesso eram repetidos mesmo que bem conhecidos pelos espectadores e pelos atores, já que, para divertir o público, recorria-se a todo gênero de indecências, despudores e patifarias, pois em cena era permitido mais do que estava escrito nos scenari. Em geral, a comédia italiana tinha uma reputação de extrema obscenidade, devassidão e libertinagem aos padrões da época medieval e renascentista. 
Porém, lembramos que era uma sociedade totalmente controlada pelas garras dos dogmas cristãos da Igreja católica apostólica romana. 
Desta forma, o personagem cômico determina a ação. Segundo Apollonio (1963), quando se diz que a Commedia dell´Arte é comédia de tipos e que ela se distingue da comédia de caracteres de Molière, por exemplo, sugere-se justamente o fato de que o personagem domina a ação, que ele a determina. Em contrapartida, o tipo esgota a ação para determinar a si mesmo. Então, retornando à ideia de que improvisar não significa inventar de pronto, sugerir novos mundos e modos, emprenhar toda uma existência em uma verdade nova, mas variar habilmente, sobre a trilha de um tema, fazendo com que a plateia experimente novamente uma ideia já apresentada com espontânea vivacidade. Como observou Tessari (1981): 
A improvisação não é utopia de uma desprentensiosa criatividade imediata, mas sim de muito viável realização do único aparente paradoxo pelo qual, ao mesmo tempo que se finge fazer nascer na cena um Texto antes inexistente, se traduz em espetáculo imediato - jogando sobre a mais ampla margem de liberdade mnemônica dos atores - não um texto nunca escrito, mas sim o fantasma de um texto sempre muito facilmente componível para que seja necessário que um Poeta o escreva (TESSARI, 1981, p. 76. Tradução nossa). 

CAPÍTULO 4- O PROPALAR E O TRANSMIGRAR: A COMMEDIA DELL´ARTE COMPÕE E RECOMPÔE A CENA TEATRAL. 

4.1. Arlecchino, servidor de dois patrões – montagem de Giorgio Strehler 

Iniciamos este capítulo fazendo uma análise de como a escola da Commedia dell´Arte deixou reverberações no teatro contemporâneo. Então, vamos nos focar na questão de como essa escola foi atualizada pelo diretor italiano Giorgio Strehler e se tornou um marco no teatro moderno. Por que a montagem do Piccolo di Milano de “Arlequim, servidor de dois patrões” de Goldoni122 foi relevante para o teatro ocidental? Muitas informações sobre a Commedia dell´Arte, inclusive vídeos, são facilmente encontradas na web assim como sobre a montagem do Piccolo di Milano e a arte de Dario Fo etc; porém, penso que são tantas ideias sobre o que foi essa escola e como ela chega no séc. XX que se necessita de uma ponderação sobre sua importância e como foi reinventada e reinterpretada. 
Muitos dizem que a Commedia dell´Arte como era feita já morreu, ficou lá atrás; porém uns tentaram revivê-la ou ressuscitá-la, e outros tentaram reinventá-la no contexto contemporâneo. Talvez, tenham chegado ao seu objetivo. Uma prova disso foi a montagem de Sthreler, o espetáculo italiano mais visto no mundo, apresentado em todos os continentes. Assim, com a vinda quase anual de Enrico Bonavera, Donato Sartori, e outros estudiosos ao Brasil, pudemos nos apaixonar instantaneamente e criar uma fascinação por esse tipo de Giorgio Strehler- (1921- 1997). Ator e diretor teatral. Graduou-se na Academia de Drama de Milão em 1940. Ele inicia sua carreira em 1941 e, em 1947 inicia sua direção dos espetáculos do Piccolo di Milano, espetáculo em que o ator é o centro da cena, a arte do ator e sua dramaturgia atoral é o foco central do palco cênico, seja ele onde for, na rua ou no edifício teatral - ainda que muitos recorram à fase goldoniana, do texto decorado, para fazer um espetáculo de Commedia dell´Arte. Por isso, iniciei essa pesquisa com uma inquietação, querendo saber como eles, os atores dell´arte, encenavam um belo espetáculo sem texto predeterminado, apenas com um canovaccio ou scenario e, como improvisavam as falas. São questões talvez não respondidas com exatidão, mas encontrei pistas muito próximas e ricas da realidade dos períodos de ouro dos cômicos dell´arte, principalmente, pelo material bibliográfico coletado na pesquisa de campo na Itália. Contudo, retomemos o passado para entender essa trajetória. Pois, superada a crise do séc. XVIII, a Commedia dell´Arte retoma a atualidade teatral no séc. XX. 
Na Itália do séc. XVIII, uma polêmica entre Carlo Goldoni e Carlo Gozzi tomou conta da cena. Ambos pretendiam trazer o teatro para o reino da literatura. No entanto, Gozzi respeitava as tradições, as sátiras e os procedimentos da Commedia dell´Arte. Goldoni reduziu o número dos tipos cômicos e transformou-os em caracteres ambientados no tempo, gerando assim a comédia de costumes. Como disse Berthold (2000): 
“Na Itália, Goldoni e Gozzi tentaram trazer o teatro popular improvisado para o reino da literatura. Goldoni reduziu o número de tipos cômicos da Commedia dell´Arte para quatro o cinco, e ajustou-os a ambientes solidamente estruturados ou comédias de costumes. Colhia seu material em Veneza. (...). Com suas peças, Goldoni realizou a tão tardia renovação do teatro italiano e repetiu o processo de fusão que, um século antes, Molière havia efetuado em Paris. Gozzi rejeitava a imitação da natureza pregada por Goldoni. Ele negava a necessidade da comédia de costumes e mostrava a magia multicolorida de suas Fiabe (...). Em sua violenta Carlo Goldoni (1707-1793). Considerado um dos mais conhecidos dramaturgos italianos fora da Itália. Nascido em Veneza, foi um reformador do teatro italiano. Estudou direito e filosofia. Morou e trabalhou em Paris e em Versailles sob a tutela do rei da França. Carlo Gozzi (1720-1806). Conde Carlo Gozzi foi um famoso escritor e dramaturgo da Itália. Nascido em Veneza em uma antiga família local, rica porém falida. Desta forma, teve de trabalhar cedo, alistando-se no exercito com dezesseis anos, mas voltou três anos depois. Escreveu muitas comédias denominadas de Fiabe e também tragicomédias, controvérsia com Goldoni, defendia o teatro improvisado, alegando que Goldoni o havia maltratado. Mas embora Gozzi desejasse insuflar vida nova à improvisação, exigia que os intérpretes se mantivessem fiéis aos textos que escrevia. (...) A admiração pelo celebrado intérprete de Truffaldino, Sacchi, (...) era o único ponto onde Goldoni e Gozzi concordavam unicamente. A força do teatro vivo reconciliou- e incorporou-as intenções opostas destes dois antagonistas e reformadores”. (Berthold, 2000, p.365). 
Goldoni foi chamado de o “ narrador de Veneza do séc. XVIII ”. Já o conservador Carlo Gozzi era um homem ligado ao passado, criticava e desprezava a obra de Goldoni dizendo que ela não era tanto uma reforma teatral, mas que alertava para o declínio da sociedade veneziana da época. Na retomada de Arlecchino, derivado de sua origem animalesca ou do tempo em que tinha uma máscara felina, demonstra ter voltada a cena cultural, pois tinha desaparecido - exceto na pantomima francesa, em que representava ao lado de um Pierrot. Reemerge na cultura europeia (séc. XX), nas obras de pintores como Picasso, assim como, na obra teatral e na reflexão de grandes reformadores do teatro moderno, como Meyerhold, Max Reinhardt, Brecht, Jacques Copeau etc. Antes mesmo da montagem do Piccolo di Milano, Max Reinhardt encena o texto goldoniano em Berlim. Assim como o encenador russo Evgeni Vachtangov, monta o texto “A princesa Turandot” de Gozzi já procurando recuperar os modos e aspectos dinâmicos da Commedia dell´Arte. Meyerhold cria um treinamento para seus atores inspirado nas pantomimas e nos tipos da Commedia dell´Arte e até inventa um chamado Dr. Dappertutto. Todos os “ismos” - simbolismo, futurismo, cubismo dadaísmo, surrealismo, expressionismo etc - que vieram na modernidade levaram à redescoberta de Arlecchino, no texto de Goldoni e na academia da Commedia dell´Arte. 
No primeiro quarto do séc. XX, em particular, intensificou-se a pesquisa da codificação e organização do corpo humano como no conjunto de potencialidades criativas e expressivas. Pensamos na obviedade em que os atores sempre usam seu corpo para representar, mas houve uma nova descoberta do potencial criativo que passou pelas artes corpóreas (dança, circo etc). De um lado, o teatro realista de Stanislavski; de outro, um ator dotado de mais recurso vocal para falar o texto e pesquisar as potencialidades corporais e vocais. 
A pesquisa teatral do séc. XX restabelece o primado do corpo. Por que Arlecchino, servittore do Piccolo di Milano foi importante? Por que contemporaneamente se veio a reaver a Commedia dell´Arte? A comédia improvisada vem pela primeira vez a ser estudada cientificamente em todos os sentidos da sua história. O modo expressivo do ator dell´arte é pesquisado, esmiuçado, decupado para entendermos sua maestria, sua arte e como se operava. Como disse Capriolo (2000)125: “[A Commedia dell´Arte] se descobre como um complexo de técnicas e de preparação dos atores, assim como um modo de aprofundamento expressivo do ator”. Carlo Goldoni não é incialmente o autor completo da obra. Ele se inspira na estrutura da Commedia all´improvviso, nos atores da companhia do grande último Arlecchino, Antonio Sacchi, e escreve somente a parte séria, deixando o restante livre para a improvisação dos cômicos. Goldoni mesmo relata isso no prólogo de “Servittore di due patrone”: 
Quando eu compus a presente Comédia, que fora no ano de 1745, em Pisa, entres os empenhos jurídicos, por entretenimento e por prazer, não a escrevi então, como hoje se vê. Com exceção de três ou quatro cenas por ato – as mais interessantes para as partes sérias – todo o resto da Commedia era indicado somente, daquela maneira que os comediantes tinham por hábito denominar “a trama”; ou seja, um roteiro estendido no qual, esboçando o propósito, os traços, e a conduta e o objetivo das argumentações que deveriam ser feitas pelos Atores, eram eles mesmos livres de prover ao improviso, com palavras adaptadas e lazzi apropriados, ideias espirituosas, pelos primeiros atores que a representaram, que eu me satisfizera muitíssimo e, não tenho dúvida em crer que eles não a tenham embelezado de improviso melhor do que aquilo que eu possa ter feito escrevendo-a. O discernimento de Truffaldino, os gracejos, a vivacidade são coisas que se mostram mais argutas, quando são produzidas a partir da prontidão de espírito, da oportunidade e da alegria”. (GOLDONI , 1971. Tradução nossa). 
Então, em 1745, na cidade de Pisa, Goldoni escreve a primeira versão de “Il servitore di due padroni”, com Truffaldino como personagem principal, a qual foi encomendada para o grande Arlecchino: Antonio Sacchi, que provavelmente a encenou em Milão com muito sucesso em 1746. Sacchi queria mudar um pouco a maneira como representar ao improviso, pedindo a um dramaturgo um texto pronto mais requintado. Dessa forma, voltando ao domínio do texto, modificado novamente por Goldoni, mas deixando a arte do ator prevalecer em cena. Apesar disso, a reforma goldoniana seria o texto voltando ao centro da cena, e à máscara é negada qualquer liberdade de falar no momento do improviso. Surge aí a decadência da comédia de improviso no séc. XVIII. 
Porém, a retomada da Commedia dell´Arte no séc. XX, com a montagem de “Arlecchino, servitore di due padroni”, de Goldoni, estreado em 1947, na encenação de Giorgio Strehler do Piccolo Teatro di Milano, tornou-se o espetáculo mais visto do mundo. E assim, Giorgio Strehler resgata da história do teatro ocidental a tradição da Commedia dell´Arte, valendo-se do texto de Goldoni e da máscara de Amleto Sartori. Strehler transforma Truffaldino em Arlecchino, por ser um personagem que o público contemporâneo melhor identificaria, assim poderia fazer mais sucesso. E ele estava certo. No papel de Arlecchino, o ator Marcelo Moretti começa a representarr sem a máscara, mas Strehler descobre um outro reformador da cenografia teatral, Amleto Sartori (pai), que revive a antiga forma de construção da máscara em couro. Nos ensaios do Piccolo Teatro, Sartori leva sua máscara para Moretti experimentar e, “reza a lenda”, ele veste a máscara e a retira logo em seguida, reclamando que a abertura do olho estava muito pequena para realizar acrobacias. Sartori muito contrariado, leva a máscara ao seu ateliê e refaz a abertura a pedido de Strehler. Mas, penso que Moretti não estava ainda familiarizado com o uso da máscara e depois se acostuma tanto que cria um lazzo da mosca sem saber que estava retomando-o do período de ouro da Commedia dell´Arte. Isso mostra que Moretti entendeu a lógica do raciocínio do personagemtipo e incorporou o mascaramento de Arlecchino. E também cria o lazzo do baú trocado (bauli scambiati). Todos os dois ainda são utilizados por Ferruccio Soleri, o segundo interprete de Arlecchino, hoje com mais de oitenta anos de idade. 
Com relação à personagem Arlecchino (ou mesmo Truffaldino), o texto é cheio de dubiedades interessantes, já que Arlecchino é servo de dois patrões - um deles é ao mesmo tempo Beatrice disfarçada de seu irmão Federico Raspone. E Arlecchino é ao mesmo tempo ingênuo e esperto, isso leva a uma maneira singular de encarar o personagem por Goldoni, talvez inspirado no Zanni napolitano Pulcinella. Arlequim é um comedor, um faminto, come de tudo, não só comida, mas a experiência dos outros; ele engole e processa isso tudo gerando sua esperteza. Não sabe ler nem escrever, mas aprende com suas experiências de vida e ensina-nos que se deve ser flexível. Esperto, faminto, ingênuo, brincalhão e jovial, esse foi o personagem de Goldoni. E ele foi muito bem composto por Ferrucio Soleri que vimos em duas oportunidades na temporada do Piccolo no teatro Argentina, em Roma, 2012.  
Pudemos observar também, assistindo à encenação de 1993, em DVD, que houve algumas alterações na cenografia, cuja primeira versão foi assinada por Gianni Rato. Houve também mudanças de atores, permanecendo Ferrucio Soleri até hoje no papel de Arlecchino, mas também sendo feito pelo ator de Brighella, Enrico Bonavera. Foram poucas mudanças nas piadas, porém os figurinos e a cenografia são notadamente diferentes em algum aspecto em cada versão do mesmo espetáculo. Quando vimos o DVD do espetáculo, observamos a jovialidade de Soleri com a máscara de Arlecchino, “brincando” mais e fazendo suas pantomimas com vivacidade. Na montagem em Roma, assistindo da plateia e depois, em outro dia, das coxias, percebemos um espetáculo mais “burocrático”, parecendo-me que somente cumpria as marcas do diretor de cena. A energia não era tão grande. Digo isso porque, quando estava na plateia, na verdade, na terceira galeria daquele imenso Teatro  
Argentina, um grupo de jovens ao lado, começou a se dispersar, a partir, talvez do meio para o fim da peça. Porém, um momento nos chamou a atenção: era o lazzo da mosca. Todos ficaram de olhos arregalados. O ator Ferrucio Soleri, com toda sua experiência, pega toda a plateia na sua mão e a conduz para um silêncio, a atenção voltada ao seu lazzo, que ele nos brindou com esse momento único de beleza, de êxtase, na arte de um grande ator em cena. Depois, vendo o mesmo espetáculo da coxia, com Enrico Bonavera no papel de Arlecchino, percebemos as mesmas marcações e a maquinaria teatral da montagem de Stherler. Nisso, pude observar a boa organização dos bastidores, com os objetos de cena bem colocados e organizados para que todos os atores e músicos pudessem executar muito bem o espetáculo. Mas, ainda era “burocrático”, sem tanta energia, aquela energia forte e de arrepiar que sentimos vendo Antonio Fava fazendo um lazzo da fome de Zanni em Veneza, no teatro Fondamenta Nuove; ou mesmo o próprio Bonavera, fazendo sua aula-espetáculo em Ouro Preto-MG, onde experimenta as máscaras de Capitano, Arlecchino, Brighella etc, em um teatro cheio, inclusive de crianças, que o observavam atentamente. Não estou julgando, mas constatando uma impressão que me mobiliza a pensar que, o texto goldoniano foi muito respeitado por Sthreler. Como seria com Dario Fo, por exemplo? Quando Fo exercita a máscara de Arlecchino, feita por Donato Sartori, ele realiza um canovaccio ou lazzi que são vivos, brilhantes, instigantes, mesmo vendo por vídeo, sentimos uma boa energia e comunicação com a plateia, pouco a ideia da reforma goldoniana de desmascaramento das personagens - e até contradizendo pela constatação genial de que Dario Fo às vezes não utiliza a máscara e interpreta Arlecchino sendo Arlecchino sem a máscara. 

4.2 Donato Sartori - a redescoberta da máscara-objeto 

É a Donato Sartori, filho de Amleto Sartori129, que devemos a redescoberta da máscara teatral da Commedia dell´Arte no séc. XX. Sua pesquisa consiste em reaver a técnica de Amleto Sartori (1915-1962) – Era um escultor figurativo que inicia a sua própria experiência criativa em 1928 com as suas primeiras esculturas e máscaras grotescas. Dedicou-se a pesquisa da máscara teatral logo depois da Segunda Grande Guerra, quando a Itália sentiu a necessidade de achar suas raízes culturais. Ele dá vida a uma longa experimentação na construção de máscaras de couro e do fenômeno da Commedia dell´Arte esquecidas há dois séculos. E ainda, cria um método de construção e de significado das máscaras. Com a morte de Amleto no ápice de sua carreira, seu filho e aluno Donato Sartori (escultor e performer) herda o patrimônio cultural e técnico do pai e continua a pesquisa ampliando-a, aperfeiçoando-a e adaptando-a a contemporaneidade. Eles colaboraram com diversas obras teatrais de Goldoni a Pirandello, do teatro clássico de Shakespeare, de Molière a Ionesco até o teatro de rua, também trabalharam com diretores consagrados como Jean Louis Barrault, Giorgio Strehler, Eduardo De Filippo, Peter Oskarson, Jacques Lecoq, Dario Fo, etc., produção das máscaras em couro, como eram feitas no período renascentista em Modena e Veneza. Amleto era um escultor estudioso das formas humanas e tinha um cuidado muito grande em realizar um rosto de Arlechinno que fosse igual não só na forma, mas na eficiência da comunicabilidade com a expressão corpórea do ator. Então ele estuda muito bem os traços das máscaras e suas influencias zoomorfas, ou seja, cada máscara tem uma ou mais influências de animais domesticados pelo homem, como gato, cão, cavalo, boi, galinha etc. - ainda que tenhamos em mente que as personagens-tipo da Commedia dell´Arte sejam inspiradas diretamente em seres humanos simbolicamente falando, ou seja, em tipos humanos e em arquétipos. 
Assim, Donato Sartori continua o trabalho de seu pai e professor, construindo um trabalho de criação de máscaras expressivas para que sejam usadas pelos atores em cena e, não somente como uma obra fixada na parede. Aliás, existe um museu criado por Donato e Paola em Pádua, que exibe máscaras da família Sartori, além de outras partes do mundo, inclusive dos índios brasileiros. Um museu de antropologia da máscara ocidental e oriental. Este é o Museo internazionale della maschera Amleto e Donato Sartori, situado em Abano Terme, na província de Pádua, que tive a grande oportunidade de visitar com o ator Fabio Mangolini, quando fui ver a palestra-espetáculo realizada por Donato e Fabio, que fez uma bela apresentação de algumas máscaras, entre elas Capitano e Arlecchino. Naquele evento que era para comemorar o carnaval, havia na plateia de um centro cultural pequeno, algumas crianças entre adultos; isto me chamou a atenção para o caráter de que a Commedia dell´Arte é parte da cultura italiana e ela é cultuada atualmente, não se perdeu. Assim como, vimos na cidade de Veneza por todos os cantos, principalmente, pela influência carnavalesca. A importância do trabalho dos Sartori que colaboraram na construção da pedagogia de Lecoq e sua escola no sentido de que Amleto criou juntamente com as experimentações de Lecoq, a máscara neutra, um objeto-cênico para trabalho e exercício do ator em treinamento e não para cena. A escola de construção de máscaras teve reverberações em vários países, inclusive no Brasil com a formação de vários pesquisadores e mascareiros. Destaco o trabalho de revitalização da máscara inteira greco-romana do grupo Familie Flöz que foram alunos de Sartori e trabalham em Berlim, a máscara inteira com pantomimas de uma grande beleza e rigor técnico. 

4.3-Jacques Lecqoc e sua escola de formação de atores 

A trajetória de construção da pedagogia da máscara e o estudo do corpo como expressão cênica feita por Lecoq em sua École Internationale de Thèâtre Jacques Lecoq apresenta um programa de formação de atores com um conteúdo que abrange: máscara neutra, larvária, expressivas inteiras, assim como o clown, o melodrama, acrobacias, etc. Lecoq explica: 
“A commedia dell'arte e suas máscaras foram introduzidas na minha pedagogia desde o começo da Escola. Infelizmente, ao longo do tempo, surgiram clichês, uma maneira dita “à italiana" de representar começou a se expandir. Jovens atores fizeram estágios de commedia dell'arte aqui e acolá, e a interpretação empobreceu-se. O próprio termo começou a me incomodar. Fui levado, portanto, a virar do avesso esse fenômeno para daí descobrir o que havia por trás dele, ou seja, a comédia humana. Desde então, tomando um caminho muito mais amplo, encontramos uma grande liberdade de invenção” (LECOQ,2010, p. 168). 
Então, em sua pedagogia Lecoq usou as máscaras da Commedia dell´Arte para trabalhar conceitos de interpretação na formação do ator. Isso possibilitou a improvisação das máscaras de Pantalone, por exemplo, retirados do contexto do séc.XVI e colocados contemporaneamente com figurinos atuais, mas as mesmas situações humanas, como o amor Jacques Lecoq (1921-1999) foi ator, mímico e professor de arte dramática. Em dezembro de 1956, Lecoq funda sua escola de formação de atores, cujo objetivo é realizar uma jornada de criação teatral. Aonde o o jogo físico do ator está presente. O ato de criação é gerado em uma base permanente, principalmente pela improvisação, primeiro traço de qualquer escrita, impossível de jovens ou a luta pela sobrevivência dos empregados. Lecoq disse (2010, p. 171): “o motor, não é o que interpretar, mas como é preciso interpretar. Quais são as forças que estão em jogo? Quem puxa? Quem empurra? Quem se puxa, quem se empurra? ”. Quando fizemos uma oficina na École J. Lecoq, o professor Eric Nesci, trabalhou o “pousser e tirer” da mimica, empurrar e puxar, movimentos corporais que se traduzem nas relações explicitadas por Lecoq na Commedia dell´Arte, que são utilizadas como princípios pedagógicos numa dinâmica de uma improvisação que tem traços horizontais e verticais como um canovaccio. 
Outra máscara trabalhada na escola que foi citada é a Máscara Neutra. Realizada por Amleto Sartori a pedido de Jacques : 
A máscara neutra é um objeto particular. É um rosto, dito neutro, em equilíbrio, que propõe a sensação física da calma. Esse objeto é colocado no roso deve servir para que s sinta o estado de neutralidade que precede a ação, um estado de receptividade ao que nos cerca, sem conflito interior. Trata-se de uma máscara de referência, uma máscara de fundo, uma máscara de apoio para todas as outras máscaras.” (LECOQ, 2010, p. 69). 
Lecoq recorreu a um grande mascareiro, pois dizia que uma boa mascara neutra é muito difícil de ser feita. “Utilizamos máscaras de couro, fabricadas por Amleto Sartori, que descendem da máscara nobre, de Jean Dasté” (LECOQ, 2010, p. 69). Enfim, uma pedagogia que utiliza as máscaras da Commedia dell´Arte não alterando seus arquétipos para contextualiza-los na atualidade, pois as relações sociais são imutáveis, e segundo Lecoq (2010), o que interessa a pedagogia de sua escola é mostrar a natureza humana, assim como os elementos universais da comédia humana para que os alunos-atores recriem o teatro contemporâneo. O interessante é que o símbolo da escola de Lecoq que é um Arlecchino. E, portanto, ele destaca a importância de se trabalhar na formação do ator contemporâneo a escola dell´arte. Lecoq (2010, p. 178) ressalta: “a commedia dell´arte está em todos os lugares, em todos os tempos, enquanto houver patrões e servidores indispensáveis a seu jogo.

4.4. Antonio Fava e sua pedagogia da máscara 

Neste tópico, gostaria de descrever uma experiência, ou melhor, duas, com esse mestre contemporâneo da Commedia dell´Arte. No fim do ano 2012, estive com Antonio Fava em seu estúdio para conversar com ele e conhecer sua escola. Eu fui recebido por sua esposa, Gina Buccino, que prontamente me levou a Fava com muita gentileza. Conversamos por uma hora, ele me disse que estava escrevendo seu último livro que saiu ano passado na Itália. Eu o indaguei sobre o que é a improvisação e como, com sua experiência, ele via a improvisação hoje na Commedia dell´Arte - questões que me afligiam ao iniciar minha pesquisa. Fava (2010, p. 46) disse que para improvisar não se deve interiorizar, pois na Commedia dell´Arte tudo é exteriorizado, tudo deve ser colocado para fora, como se regurgita o que está enfurnado nas entranhas. O ator também deve aprender bem a personagem, a máscara e como ela pensa, como ela reage diante as outras. Fava, agora mostrava-me suas máscaras e me dizia que elas eram construídas também pelos alunos no seu curso de verão em que havia a parte de construção de máscaras e a outra, de utilização e criação com os tipos da Commedia dell´Arte. E no dia vinte e quatro de janeiro de 2013, vi uma palestra-espetáculo dele, no Teatro Fondamenta em Veneza, para uma plateia de empregados de uma empresa (sim, pasmem!) - e eles se divertiram muito, pois ele colocou duas pessoas para improvisar junto com uma atriz que o acompanhava. Ele mostrou as máscaras e contou a história da Commedia dell´Arte, suas características principais. E aí, pegou a máscara de Zanni, improvisando o lazzo da fome. Assim, também fez uma cena com Pulcinella e dois Enamorados. Contudo, pudemos vivenciar uma dinâmica das relações das máscaras e como ela se produzia até com não-atores. E ela funcionou. Pois, como disse Lecoq (2010) “o que interessa são as relações sociais e elas se repetem”. Numa cena simples de jovens apaixonados, Fava coloca um rapaz da plateia e o orienta a como fazer a “corte”; a seguir narra como a expressão corporal constrói a personagem. A voz é muito difícil e importante no processo de mascaramento - ou como ele chamou mascarização (mascherizzazione), usar a caricatura e a paródia como elementos de composição dos tipos. No processo de vocalização do tipo, a lógica da personagem deve compor junto com suas características físicas e levar à voz. Como exemplo, um Pulcinella tem voz de papagaio pela sua composição tipológica originária napolitana do pintinho. Fava, nessa sua palestra, mostra o uso do bastão (batocchio), muito característico do Zanni que, dá e 
leva bastonada. Esse bastão foi usado para o lazzo como vários recursos, para bater, para delimitar espaço, para mostrar a barriga aberta e vazia de fome. 
A máscara é a face, e também a pele e carne da personagem. O ator deve colocar isso por inteiro, de corpo inteiro. Deve sair para a coxia e voltar-se ao público com uma caracterização pronta em tudo: corpo, voz e figurino. E a máscara na Commedia dell´Arte é uma exageração do rosto humano, não é o rosto verdadeiro, natural, mas parecido, ampliado. Como observou Fava: “Não existe uma face como esta (mostra a máscara de Zanni), mas essa face é uma compilação de várias faces!” 
Figura 61. Fonte: Fava (2010). 

4.5. Experiências pedagógicas com as máscaras 

O uso da Commedia dell´Arte na escola e na formação do ator brasileiro hoje tem ligação direta no meu trabalho em sala de aula. Há mais de dez anos no magistério superior, trabalhando com a formação de artistas cênicos, principalmente, atores e atrizes, venho pesquisando e experimentando os métodos de Lecoq e da escola da Commedia dell´Arte, inclusive, como ator e dramaturgo, montei um espetáculo chamado O Chapéu e outro O Casamento do Capitão Cagapau, com o grupo Forado Sério em Ribeirão Preto-SP. 
Em sala de aula, com atores em formação, trabalhei com a máscara inteira expressiva. O processo todo se inicia com a máscara neutra, depois a expressiva inteira e a meia-máscara expressiva, esta da Commedia dell´Arte. Nesse processo de aprendizagem, o objetivo principal é a amplificação da expressividade do ator, no sentido corporal e também vocal. 
A metodologia de Lecoq com a máscara neutra trabalha com eficiência a precisão do ator, a comunicação sem exageros, sem ruídos, busca um gesto preciso para comunicar um tema, uma ideia ou uma situação. O exercício que Lecoq propõe de atirar uma pedra é clássico, muito eficiente para trabalhar essa precisão do ator. Consiste em propor ao ator que ele calce a máscara de costas para a plateia, vire-se e ache uma pedra (imaginária), pega-a e atire-a. Um exercício que trabalha o olhar do ator através da máscara neutra, pois ela neutraliza o rosto, a face do ator, mas amplia o gestual corpóreo, fazendo uma comunicação limpa e direta. Outro exercício que utilizo muito é o “nascer”. O ator deita-se de costas com a máscara e se vira como se fosse um bebe nascendo pela primeira vez, descobrindo o mundo. Este exercício é muito difícil e complexo para um aluno-ator, gera inclusive conflitos internos já que trabalha uma grande dificuldade expressiva que é contida em gestos precisos e até sutis. Toda a movimentação do ator nesse momento é ampliada de uma forma tal que qualquer olhar, movimento ou gesto será notado pela plateia de colegas em sala de trabalho. Nesse momento, deve-se estar em sala de trabalho e cuidar atenciosamente para que os comentários sejam precisamente do trabalho em cena e que o ator se sinta à vontade para errar. Pois o trabalho com a máscara neutra é desgastante e cansativo, mas dá resultados muito bons com relação à precisão corporal e expressiva dos alunos-atores. 
Também, existe um exercício em que o ator deve mostrar um “estado de espírito” ou condição humana, como por exemplo, a velhice ou a fome. Outro exercício que proponho é o ator mostrar uma despedida. No método de Lecoq, ele diz para despedir-se em uma estação de trem, mas aqui em nosso país, o mais comum seria uma rodoviária ou outro lugar. Em outro exercício com a máscara neutra, trabalhamos cenas curtas, que são criadas pelos atores. Nessas cenas, os atores podem usar um objeto e se relacionar com ele na cena. Então aparecem as dificuldades em não fingir estar contracenando, mas estar no momento presente, daquele momento em cena. Essa é a lei da máscara neutra, o presente, o aqui e agora. Ela não tem passado nem futuro, como as máscaras expressivas, que possuem alguma informação marcada nos traços feitos pelo mascareiro. 
Também fazemos um trabalho com a máscara expressiva inteira, que tem já uma indicação de personagem expressivo, uma máscara que sugere um caráter: jovem ou velho, rápido ou lento, ingênuo ou esperto etc. O grande exercício é a montagem de cenas curtas, com pequenos roteiros feitos pelos alunos-atores, um canovaccio. Nesse trabalho, a máscara expressiva pede ao ator uma composição física. Não há vocalização, pois a máscara é fechada na boca. Não se deve falar atrás de uma máscara como essa, pois se quebra um código, uma convenção, uma falta de respeito com ela. Já vi isso acontecer e, é péssimo. Como se quebrássemos a fina camada de magia quando se utiliza a máscara. Fava disse que, na Commedia dell´Arte, a máscara expressiva funciona como se fosse uma personagem de desenho animado de hoje. Nós nos colocamos dentro da fantasia quando compramos a ideia do ator mascarado que não é mais ele; como um boneco ou marionete, olhamos para ela e não para o ator atrás dela. 
Então, quando no processo de formação do aluno-ator chegamos à Commedia dell´Arte, vamos usar a meia-máscara expressiva. Pode se usar a meia-máscara sem ser da Commedia dell´Arte; mas, por se tratar de uma escola, uma academia também, a máscara da Commedia dell´Arte reflete a opção pedagógica que faço. Acho essa opção interessante, por proporcionar ao ator uma reflexão sobre essa academia, tanto no âmbito da história do teatro ocidental, como a do ator e suas reverberações contemporâneas. Essa academia dell´arte é útil na formação do ator pelas suas características, como a improvisação e a composição tipificada de personagens. Como tipificação, o aluno aprende que cada personagem-tipo tem caracteres próprios e interligados nas relações dentro do scenario ou canovaccio. O tempo de estudo é um pouco maior, porém não menos relevante que os anteriores. E assim, no processo, é proposta a montagem de um único scenari ou de várias cenas curtas e até mesmo algum lazzo. Mas ainda temos questões a pesquisar desse tempo de maturação do ator em incorporar os tipos e seu raciocínio, pois na época de ouro da Commedia dell´Arte, os atores levavam anos trabalhando e colhendo formas de atuação para “lapidar” seu personagem. Então, esse processo de aprendizagem com a máscara neutra, expressiva e a Commedia dell´Arte é um ciclo em que se pretende exercitar e pesquisar a expressividade corporal e também vocal do ator em formação. Com essa nossa experiência didática, esse processo vem demonstrando resultados satisfatórios, em que os alunos passam a ter um instrumental e um repertório próprios para usar em sua carreira profissional em atuação ou mesmo encenação de um espetáculo. Os métodos expressivos com as máscaras para formação do ator tem um trilho um pouco mais delineado pelos mestres citados, como Lecoq e os italianos da Commedia dell´Arte. Esses caminhos já trilhados são a base de uma formação que visa a respeitar a tradição, mas também, incorporá-la e torná-la próxima à realidade contemporânea e, assim permitir uma liberdade criativa ao ator em formação. 

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Quando elaborei estas composições, que agora tendes em mãos, nunca pensei em revelá-las ao mundo de outro modo que não fosse representando-as nos palcos públicos (SCALA apud BARNI, 2003, p. 55). 
Concluímos com as palavras de Flaminio Scala que representar um espetáculo é talvez mais simples que revelar em palavras os seus segredos. A Commedia dell´Arte, como foi feita, já não existe, extinguiu-se com o fim do Renascimento. Hoje, temos uma reteatralização da Commedia dell´Arte, uma tentativa, bem-sucedida penso, de aprender sua “arte”, sua maestria, sua escola. Essa academia dell´arte é utilizada por muitos mestres e aprendizes na contemporaneidade para exercitar a arte do ator e nela trilhar um caminho de liberdade criativa. Mas, como disse Apollonio (1982), a liberdade criativa, mesmo na Commedia dell´Arte, era fruto de uma longa disciplina. E é essa disciplina, essa escola, que levamos para a sala de ensaio, no lugar de preparação e formação do aluno-ator. 
De acordo com Tessari (1969): “Os atores do século passado foram quase todos escritores”. Ele ainda diz que esse fenômeno e a técnica de improvisação demandava talento e cultura. O mito da Commedia dell´Arte seria uma forma popular ou erudita? Ser popular não significa ser pobre intelectualmente. A Commedia dell´Arte talvez fosse imitatio vitae no sentido obviamente de não ser de um realismo banal, mas, uma observação altamente formalizada e codificada da realidade. 
O fato mais relevante da Commedia dell´Arte é o fato que ela nasce e mantém presente no palco o ator “di mestiere”, de ofício, o ator profissional. Dessa forma, segundo Apollonio (1982), para se tornar cômico, era necessário um homem engenhoso, culto - para sustentar uma discussão, um argumento - e com boa memória; era também necessário estudo, mas o principal eram sua natureza e seu caráter. Ao apresentar sua cena, se o cômico não aborrecer, se liberar-se do pedantismo, poderá ser cômico, ou seja, na primeira cena o ator pouco pode valer-se de seu saber, se não dominar seu caráter e, consequentemente, seu ofício, sua profissão - uma arte que nasceu com os cômicos dell´arte já por definição. 
Assim também, ousaram colocar as mulheres em cena, o que foi um plano muito bemsucedido. A indústria do entretenimento teatral da Commedia dell´Arte fez escola, como temos hoje as escolas de samba do Rio de Janeiro, que são indústrias da bela festa do carnaval brasileiro. As grandes escolas na Commedia dell´Arte foram as companhias dell´arte. A formação definitiva deixada por Angelo Beolco se deu na Companhia “i Gelosi”. Nos últimos anos do séc. XVI, os atores plantaram em seu primeiros anos uma Commedia dell'arte arejada, mas capaz de mudar a qualquer momento, venturosa e paga por sua popularidade. Os Gelosi equilibaram o velho com o novo, a comédia antiga com a nova, a tradição cômica com o gosto literário. Faziam isso através dos tipos, sérios e cômicos, e apoiados pela Companhia se apoiava, particularmente na parte ridícula. 
Dessa forma, havia a grande importância dos servos (Zanni - Simone da Bologna; Francatrippe - Gabriele Panzavini) e dos velhos, que faziam uma comicidade muito selecionada, numa parte mais comprometida com o dinamismo da ação cênica: O Magnífico, Giulio Pasquati, por exemplo - bom ator também das partes meditativas, como tragédias e pastorais -; Lodovico de'Bianchi, que interpretava Dottor Graziano Partesana da Francolino e deveria fazer um contraponto sábio entre o seu latim macarrônico e uma licensiosidade literária das personagens sérias. 
A academia dos Gelosi permanece, assim, perfeitamente equilibrada entre as diversas correntes de gosto: conciliando cada vez mais, e definitivamente, a invenção com a regra, a imaginação improvisacional com a ponderada arquitetura da cena, admite a comédia de improviso e o indispensável suporte da cultura literária de seu tempo e do tempo seguinte, na época de ouro da Commedia dell´Arte (séc. XVI, XVII ). Esse reconhecido esforço foi testemunhado no livro de Flamínio Scala - Teatro delle favole rappresentative. A escola dos Gelosi não era propriamente um planejamento exclusivo: era uma atitude que podemos observar a distância e com uma certa aproximação na pesquisa bibliográfica. 
O cavalo de batalha dos Gelosi, por exemplo, era a Pazzia D’Isabella - a atriz sabia fazer com maestria temas célebres de "loci communes" da poesia, da Olímpia e Armida abandonadas - em que a loucura aparecia, não mais vigiada, como em Ariosto , mas como uma superior visão da amorosa harmonia. Isso era popular e erudito ao mesmo tempo. E isso, sustentou a comédia de Zanni , a comédia ao improvisso , a comedia italiana, e reverberou pela Europa , saindo da Itália e chegando à França , Alemanha, Rússia etc. Nos dias atuais, chegou também ao Novo continente, com sua carroça cheia de fantasias - como no filme de Ettore Scola, “A viagem do Capitão Tornado”, célebre homenagem aos cômicos dell´arte, com o grande ator Massimo Troisi no papel de Pulcinella. 
Aqui, senhores, um retrato de toda a iniquidade, o compêndio de todas as malícias, e para dizer tudo em uma palavra: aqui está Frittellino (APOLLONIO, 1940, p. 242). 
E assim termina a comédia.